Série de artigosA Ética Budista nos Negócios.

Estamos destacando trechos do artigo “Theravāda Buddhist Ethics” [“Ética Budista Theravāda”], de autoria de Wit Wisadavet, visando o conhecimento e o entendimento sobre o sistema de pensamento (ética, princípios e valores), o sistema organizacional (ambiente de trabalho, de relacionamentos e de políticas) e o sistema de tomada de decisões (propósitos, resultados e metas) de uma Organização Baseada na Espiritualidade (OBE), sendo esse tipo de Organização uma tendência global irreversível para as pequenas, as médias e as grandes Empresas, em quaisquer mercados de atuação, que visam a agregação de valor para todos os envolvidos e a sua própria perenidade.

Fonte:

The Chulalongkorn Journal of Buddhist Studies – An Academic Journal Devoted to the Academic Study of Buddhism [The Chulalongkorn Journal of Buddhist Studies – Um Periódico Acadêmico Dedicado ao Estudo Acadêmico do Budismo].

Publicado por Center for Buddhist Studies [Centro para Estudos Budista] – Universidade Chulalongkorn, Tailândia.

Conselho Consultivo

  • Phra Dhammakosacharn
  • Wit Wisadavet
  • Sunthorn Na-rangsi
  • Preecha Changkhwanyuen
  • Mark Tamthai
  • Donald K. Swearer

Editor

Somparn Promta[email protected]

Site: The Chulalongkorn Journal of Buddhist Studies

Tradução livre Projeto OREM® (PO)

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THE CHULALONGKORN JOURNAL OF BUDDHIST STUDIES

An Academic Journal Devoted to the Academic Study of Buddhism

Published by Center for Buddhist Studies

Chulalongkorn University

Volume 1-3

[2002-2004]

EDITED BY

Somparn Promta

Department of Philosophy

And Center for Buddhist Studies

Chulalongkorn University

Bangkok, Thailand

SUMÁRIO

  • From the Editor [I] – Somparn Promta
  • Theravāda Buddhist Ethics [1] – Wit Wisadavet
  • A Concept of Rights in Buddhism [17] – Somparn Promta
  • Business and Buddhist Ethics [39] – Subhavadee Numkanisorn
  • Administration of the Thai Sangha [59] – Sunthorn Na-rangsi
  • The Application of Buddhist Ethics to Thai Society [75] – Preecha Changkhwanyuen
  • Buddhist Perspectives on Health and Healing [93] – Wichit Paonil and Luechai Sringernyuang
  • Consumerism, Prostitution, and Buddhist Ethics [107] – Phra Somsak Duangsisen
  • Dhammic Socialism: Political Thought of Buddhadāsa Bhikkhu [115] – Preecha Changkhwanyuen
  • How Should We Understand the Dhamma [139] – Buddhadāsa Bhikkhu and M.R. Kukrit Pramoj
  • The Buddhist Philosophy of Education [159] – Wit Wisadavet
  • Buddhadāsa Bhikkhu and Dhammic Socialism [189] – Tavivat Puntarigvivat
  • Going Forth in Thai Society [209] – Chamnong Adiwathanasiddhi
  • Political Beliefs of the Thai Sangha [219] – Pholsak Jirakraisiri
  • Buddhism and Human Genetic Research [233] – Somparn Promta
  • Buddhist Analysis of Capitalism [247] – Preecha Changkhwanyuen
  • Boonnoon’s Critique of Thai Sangha [261] – Pagorn Singsuriya
  • Buddhist Economics and the Asoke Buddhist Community [271] – Suwida Sangsehanat

Do Editor

Convite para se Juntar ao Mundo dos Estudos Budista

“O Chulalongkorn Journal of Buddhist Studies é um humilde periódico dedicado principalmente a publicar artigos sobre o estudo acadêmico do Budismo. Como nós entendemos, pode haver vários entendimentos em relação ao termo ‘estudos Budistas’. No entanto, o nosso entendimento dessa palavra parece seguir o que foi dito pelo próprio Buda. O Budismo nos ensina a explorar o que deve ser considerado como os valores da vida. Normalmente, a visão Budista sobre o valor da vida está intimamente relacionada a uma coisa chamada ‘verdade’. Nós pensamos que o objetivo básico do estudo do Budismo é a verdade, ou um caminhar perto da verdade. A verdade, em nossa visão, é alguma coisa que é capaz de nos dar pelo menos duas coisas, a saber, sabedoria e felicidade. Portanto, embora esse periódico seja acadêmico, nós esperamos que o que for encontrado nele possa promover a verdade, como dito acima.

A internet tem o potencial de nos fazer superar algumas limitações dadas a nós por condições naturais e não naturais. No passado, publicar um livro ou algum tipo de escrito nunca poderia ser independente da comercialidade. Exatamente, o propósito básico da publicação de livros é unir duas pessoas: o escritor e o leitor. Isso não é diferente do propósito de produzir quaisquer bens em que duas pessoas, a saber, a pessoa que produz e a pessoa que consome, estão interligadas. A internet nos dá uma chance para o leitor e o escritor se encontrarem sem a terceira pessoa que no passado tinha o papel principal em decidir se, nesse caso, ela permitiria ou não que essas duas pessoas se encontrassem. O periódico online é barato e é capaz de ser livre da influência da comercialidade. Em textos Budistas, às vezes uma parábola das velas é dada pelo Buda para ilustrar como o Budismo concebe uma coisa chamada caridade. Como nós sabemos, um dos grandes ensinamentos do Budismo é um ensinamento sobre doação. Nós sabemos disso por meio de uma palavra Páli ‘dāna’. A doação na perspectiva Budista é feita para fornecer pelo menos duas coisas para o doador: felicidade e sabedoria. Quando nós damos; isso é como acender uma vela no escuro. Quando os nossos amigos vêm à nossa casa e pedem permissão para acender as velas deles com a nossa vela; isso é um grande prazer para nós em permitir que os nossos amigos obtenham o que eles necessitam. Quando nós decidimos lançar esse periódico, a imagem das velas ditas acima apareceu em nossa mente.

Todos os escritos nesse periódico são totalmente doados gratuitamente para o leitor. Como nós pensamos que ninguém no mundo é capaz de ser visto como o doador ou o tomador sozinho, o que nós temos feito em nome do editor e do escritor e outra pessoa relacionada é visto por nós como um tipo de ação feita por amigo para o amigo. Mesmo para o leitor que sente que ele prefere ler a escrever, apenas ler é o suficiente para nos fazer sentir que nós temos alguma coisa dada por nosso leitor. Méritos nos ensinamentos Budistas são realizados sob esse entendimento da amizade entre homem e homem e entre homem e outros seres sencientes. Chegando a esse ponto, o editor gostaria de aproveitar essa oportunidade para convidar os estudiosos do Budismo a partir de qualquer parte do mundo para se juntarem ao periódico. Há algumas informações primárias sobre o periódico a serem declaradas como segue. Primeiramente, como nós sentimos que o nosso periódico deve ser amigável e natural, a maneira do periódico é projetada para servir a esse propósito tanto quanto possível. Em qualquer periódico em Inglês, nós pensamos que um dos muitos padrões exigidos é o idioma. Parece que para atender a esse requisito, o nosso periódico deve ter o editor de idioma responsável por esse assunto. No entanto, nós decidimos evitar o uso do editor de idioma pela principal razão de que nós queremos que o nosso periódico seja natural. O Inglês agora é usado por um grande número de pessoas no mundo que não usam o Inglês como primeira língua. Até mesmo o editor desse periódico é aquele que tem aprendido Inglês como segunda língua e não usa o Inglês na vida diária. Se nós aceitamos a verdade de que para amigos as ações erradas não são importantes, nós esperamos que os nossos amigos que usam o Inglês como língua nativa tenham paciência para ver o Inglês em outros estilos, mesmo no estilo errado de acordo com os seus padrões.

Para aqueles que desejam se juntar a nós, por favor enviem os artigos ou quaisquer formas de escritos acadêmicos sobre o Budismo para o editor por meio do endereço de e-mail fornecido. Nós temos vários estudiosos Budistas para ler os manuscritos antes da publicação. No entanto, o processo de revisão por pares é feito sob entendimentos amigáveis, como dito anteriormente. Nós não esperamos uma coisa normalmente chamada de padrões acadêmicos se essa coisa significa ‘o que você deve fazer é como escrever uma tese para um mestrado ou doutorado’. O que nós esperamos é que o artigo tenha algum ponto para fazer o leitor entender melhor o Budismo. Nós temos tentado o máximo possível fazer o formato do periódico artístico e bonito. Todos os artigos publicados são formatados em formato PDF e organizados de forma que o leitor seja capaz de imprimi-los pessoalmente e ter um belo volume. No futuro, nós esperamos que o número de volumes aumente; e por essa razão nós temos projetado todas as coisas para fazer o periódico, quando impresso para uso pessoal, formar um conjunto de livros com design artístico e bonito. Além do periódico, outra coisa que nós temos concebido em nossa mente é se for possível publicar e-books sobre o estudo acadêmico do Budismo, nós faremos isso. E certamente, espera-se que esses e-books sejam de distribuição gratuita, assim como o periódico.

Nós fazemos o nosso trabalho de coração.

Somparn Promta

Centro de Estudos Budistas e Departamento de Filosofia

Chulalongkorn Unibersity Bangkok, Thailand.”

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ÉTICA BUDISTA THERAVĀDA

Por Wit Wisadavet

“Entre os círculos filosóficos, há duas questões éticas fundamentais que são um foco de interesse para filósofos de várias escolas. A primeira é a questão do objetivo supremo na vida; a segunda é a questão do que deve ser usado como um medidor para ações boas e más, para decidir quais ações são certas e quais são erradas. Nós estaremos examinando a perspectiva Budista sobre essas duas questões.

O objetivo supremo na vida

De acordo com a visão Budista, o objetivo da vida pode ser visto de duas perspectivas: a negativa e a positiva. A perspectiva negativa é a fuga a partir do sofrimento. A perspectiva positiva é a obtenção da felicidade. As pessoas tendem a olhar para o Budismo no sentido de escapar do sofrimento, que é a perspectiva negativa.

Essa perspectiva surge do ensinamento central do Budismo, as quatro nobres verdades, que lidam com a presença do sofrimento, a causa do sofrimento, o estado de cessação do sofrimento e o caminho para atingir a cessação do sofrimento. Assim, parece que o Budismo enfatiza o sofrimento, o que, embora verdadeiro em certo sentido, não é toda a verdade, como nós veremos.

O Budismo acredita que o sofrimento surge quando as pessoas não veem as coisas como elas realmente são, de acordo com a verdadeira natureza delas. De acordo com o Budismo, os seres humanos criam o mundo dando valor e significado às coisas. Uma vez que eles deram significado a alguma coisa, as pessoas esperam que essa coisa prossiga de uma certa maneira. No entanto, as coisas acontecem de acordo com a própria natureza delas e não estão dentro de nossa capacidade de controlar completamente.

Quando elas não acontecem como nós as desejamos que acontecessem, nós experienciamos decepção e sofrimento. Embora os seres humanos sejam capazes de controlar as coisas em algumas áreas, os nossos desejos são infinitos, então nós atribuímos significados ao mundo infinitamente e nós esperamos coisas a partir do mundo impacientemente. Então o sofrimento humano surge repetidamente.

O agente importante para nós darmos significado às coisas do mundo, que eventualmente nos faz sofrer, é taṇhā. Taṇhā significa querer, mas isso não é todo tipo de querer. Quando alguém está com sede e quer beber água, ou está com frio e quer vestir um casaco, isso não é taṇhā. Isso pode ser chamado de necessidade natural. Arahants, que estão fartos de taṇhā, são capazes de ter tais desejos. Diz-se que um arahant é alguém com poucos desejos (appiccho). O desejo que é taṇhā é o desejo que não está de acordo com a natureza, ou que é excessivo, como sentir frio e querer não apenas um casaco, mas um caro e bonito. Nós concebemos taṇhā quando há ganância (lobha), raiva (dosa) e delusão (moha) na mente.

[Observação PO: No Budismo, um Arhat (sânscrito: अर्हत्) ou Arahant (páli: अरहंत्, 𑀅𑀭𑀳𑀦𑁆𑀢𑁆) é alguém que obteve uma visão da verdadeira natureza da existência e alcançou o Nirvana e foi liberado do ciclo infinito de renascimentos. Fonte: Wikipedia]

Essas três motivações são expressões de uma coisa e essa é a sensação de que há um eu ou self. A ganância (lobha) é o desejo de ter alguma coisa que não é o seu direito ou que está além da sua capacidade. Ela surge por causa do sentimento de que as coisas têm que ser ‘minhas’. A raiva surge por causa do sentimento de que o eu (ser, self) está sendo ferido ou criticado. A delusão surge porque há o sentimento de que há um eu (ser, self) que sabe e é todas as coisas. Assim, se nós falássemos mais profundamente, nós teríamos que dizer que o sofrimento surge a partir de dar significado ao mundo e que dar significado ao mundo é o trabalho de taṇhā. Em última análise, taṇhā surge do sentimento de que ‘esse sou eu’. A transcendência do sofrimento só é capaz de surgir quando esse sentimento é destruído, e isso acontece quando nós vemos as coisas de acordo com a verdade.[1]

[1] Veja Wit Wisadavet, ‘Tratamento de anattā nos suttas,’ Research Journal, Chulalongkorn University, junho de 1976, pp. 91-105.

O Budismo ensina não apenas a escapar do sofrimento, mas também a experienciar a felicidade, entretanto, ele enfatiza o sofrimento porque antes que alguém seja capaz de experienciar a felicidade é necessário transcender o sofrimento. Um homem com dor de dente sofre. Se ele aplica remédio e a dor passa, isso não significa que ele é feliz, mas apenas que ele escapou do sofrimento. Porém, uma vez que a sua dor de dente é curada [healed] e ele é capaz de ler um livro favorito, então pode-se dizer que ele experiencia a felicidade.

Filósofos de quase todas as escolas concordarão que a coisa mais valiosa na vida é a felicidade, entretanto, escolas diferentes têm ideias diferentes do que a felicidade é. O Budismo ensina que a felicidade é o que é de valor na vida, mas a felicidade no entendimento Budista contém aspectos que são semelhantes e diferentes de outras escolas. O Budismo divide os níveis e tipos de felicidade de muitas maneiras diferentes,[2] mas independentemente do tipo de classificação elas abrangem o mesmo significado. Aqui eu dividirei a felicidade de acordo com a classificação tripla Budista: (1) felicidade sensual; (2) felicidade jhāna; (3) felicidade nibbāna.

[2] Veja Phra Rājavaramunī, ​​Buddhadhamma (Bangkok: Mahāchulālongkorn University Press, 1986), p. 565.

Kāmasukha: felicidade sensual

A maioria dos seres não iluminados (puthujjana) tem algum taṇhā, mais ou menos. Eles terem taṇhā lhes faz com que eles atribuem significados ao mundo e coloquem expectativas nele.

Às vezes, eles conseguem o que eles querem e experienciam felicidade, mas às vezes eles ficam desapontados e experienciam sofrimento. A felicidade que surge dessa forma é física ou material. Ela é chamada kāmasukha (felicidade sensual) e, falando de modo geral, pode-se dizer que abrange tipos sociais de felicidade, tais como posição e honra, o prazer da amizade, etc. Todas são experiências de felicidade a partir de coisas no mundo externo à pessoa (ou seja, objetos materiais, plantas, animais e outros humanos). Se a experiência de felicidade do mundo externo for permitida sem controle, ela vem a ser sofrimento. Estar excessivamente absorto e abandonado a esse tipo de felicidade não apenas coloca a pessoa em um estado de incapacidade de experienciar a felicidade novamente, mas também causa inquietação na sociedade, levando à contenda, exploração e injustiça. A sociedade é capaz de cair em tal estado de turbulência que ninguém terá a chance de experienciar esse tipo de felicidade.

As leis de um país podem ajudar a evitar esse estado de turbulência, no entanto, as leis só são capazes de ajudar até certo ponto. Elas podem impedir que outras pessoas roubem a comida que nós estamos comendo, entretanto, elas não podem forçá-las a nos dar comida quando nós estamos com fome e não temos nada para comer. As leis não podem fazer com que as pessoas sejam amigáveis ​​umas com as outras ou respeitar umas às outras. Essas coisas surgem a partir de princípios de prática diferentes das leis. No entanto, a coisa mais importante que as leis não são capazes de nos dar é um estado de espírito interior que seja propício à experiência da felicidade sensual. Como um exemplo simples, pessoas cujas mentes são constantemente presas da inveja, da cobiça ou de pensamentos de vingança não terão chance de experienciar a felicidade a partir do mundo exterior.

O Budismo ensina que a experiência da felicidade sensual só pode prosseguir suavemente quando as pessoas têm moralidade (sīla). O nível elementar de moralidade são os cinco preceitos: não destruir a vida, não tomar indevidamente coisas pertencentes a outros, não dizer mentiras, não cometer conduta sexual equivocada e não tomar intoxicantes. Esses cinco preceitos são regras elementares de treinamento que minimizam os obstáculos para desfrutar da felicidade sensual. Se os ‘cinco dhammas’ também forem praticados, esses obstáculos serão reduzidos ainda mais. Os cinco dhammas são ter boa vontade e gentileza, viver honestamente, restringir e controlar a si mesmo em relação aos prazeres sensuais, ser honesto e ter atenção plena e diligência em todos os momentos.

O Budismo não vê o desfrute da felicidade do mundo exterior, ou a felicidade sensual, como um mal; ele apenas afirma que existem tipos mais elevados de felicidade.[3]

[3] Tipiaka: 13/398. (O Tipiaka usado pelo autor nesse artigo é a versão Royal Thai; o primeiro número se refere ao volume e o segundo número se refere à passagem. Editor.)

Existem muitos níveis nos quais a felicidade sensual pode ser experienciada. Se ela for desfrutada imoralmente ou ilusoriamente, levará a mais sofrimento do que felicidade. Se ela for desfrutada moralmente, sem prejudicar os outros, com contenção e moderação, sempre tendo em mente que o desfrute da felicidade sensual envolve uma mistura de felicidade e sofrimento, então quando alguém está desapontado, pode aceitar essa decepção como algo natural e quando alguém é bem-sucedido, não se torna inflado por isso. Se alguém é capaz de praticar dessa forma, a felicidade sensual não é um mal, mas alguma coisa de valor para seres não iluminados. O nível mais alto de desfrute da felicidade sensual é desfrutar apenas o suficiente para permitir que a vida prossiga confortavelmente a fim de buscar os níveis mais elevados de felicidade — entretanto, isso pode não ser felicidade sensual de forma alguma.

A visão Budista sobre a felicidade material é um meio termo entre duas visões extremas. A primeira é a visão dos ascetas religiosos na Índia na época do Buda, que acreditavam que para atingir o estado mais elevado era necessário descartar o corpo e, assim, purificar a mente mais facilmente. O Buda tinha usado o método de auto mortificação, mas ele descobriu que não era o caminho para alcançar a verdade. Os discípulos do Buda eram frequentemente denegridos por outros grupos de renunciantes como não puros verdadeiramente porque não denunciavam o corpo. O outro extremo é a visão das pessoas comuns que veem os prazeres da carne como a felicidade mais elevada e acreditam que nós devemos buscar o máximo deles que nós pudermos. Esse também não é o caminho para a verdade. O Buda trilhou o caminho do meio, não se abandonando à felicidade sensual e não vendo o corpo como uma prisão que prende a mente, como algumas religiões e escolas filosóficas acreditavam.

Jhānasukha: a felicidade de absorção

Embora a felicidade sensual não seja um mal, é uma forma grosseira e efêmera de felicidade. Os Devas desfrutam da felicidade sensual nos reinos celestiais, mas mesmo que a felicidade dos reinos celestiais seja tão refinada e exaltada, ela não é tão sutil quanto o próximo nível de felicidade. Os objetos que fornecem felicidade sensual são limitados em número: não há o suficiente para todos, então a contenda e a discussão seguem.

Por conta dos prazeres sensuais, o rei contende com o rei, o brâmane contende com o brâmane… a mãe contende com o filho, o filho contende com a mãe… o pai contende com o filho, o filho contende com o pai… o amigo contende com o amigo…[4]

[4] Tipiaka: 12/198.

A consciência no nível da realidade [awareness] da moderação na busca pela felicidade sensual tem um bom efeito tanto na sociedade quanto em si mesmo. O próximo nível de felicidade acima da felicidade sensual é a felicidade das absorções (jhāna). Ela pode ser chamada de felicidade mental. Jhāna se traduz como ‘olhar fixamente, encarar’, referindo-se ao estado mental que tem alcançado um certo nível de concentração (samādhi). A felicidade jhāna é a fronteira entre a felicidade sensual e a felicidade do nibbāna, que é o tipo mais elevado de felicidade. A felicidade jhāna não surge a partir do contato através dos cinco sentidos, ou do desfrute dos cinco prazeres sensoriais (formas, sons, cheiros, sabores, toques). Ela é uma felicidade que não é contaminada pelo sofrimento como a felicidade sensual. A felicidade jhāna surge do cultivo da mente conhecido como prática de meditação. A mente que tem desenvolvido concentração até o nível de absorção (jhāna) escapou temporariamente das impurezas e do desejo (se o escape for final, é chamada de nibbāna). Ela é caracterizada pela paz, serenidade, clareza e pelo poder de atingir o mais alto nível de verdade.

No treinamento mental que leva à obtenção de jhāna, é necessário superar cinco obstáculos importantes (conhecidos como os cinco nīvaraṇa ou obstáculos). Eles são 1. kāmachanda, desejo por isso e aquilo; 2. byāpāda, raiva e ressentimento; 3. thīnamiddha, tédio e depressão; 4. uddhaccakukkucca, inquietação e ansiedade; e 5. vicikicchā, dúvida e incerteza sobre os resultados da prática. Quando os cinco obstáculos tem sido abandonados e a mente está limpa, aí surge um sentimento de saciedade mental, que é diretamente oposto à saciedade física. Isso é um tipo de bem-estar puramente mental, independente de visões, sons, cheiros, gostos e sensações tangíveis.

A pessoa que se livra dos cinco obstáculos é comparada a uma pessoa que tem se recuperado a partir de uma doença: ela é mais forte e pronta para trabalhar pelo tipo mais elevado de felicidade. A felicidade jhāna pode ser chamada de felicidade que surge da concentração, pois é o que resulta quando a concentração é desenvolvida até um certo nível.

A felicidade jhāna é semelhante à felicidade sensual, pois ela ainda requer certas condições para fornecer sentimentos. O sentimento é chamado vedanā e ele surge quando a mente reconhece certos objetos. As coisas que a mente reconhece são chamadas ārammaṇa. A felicidade sensual é o sentimento agradável (sukhavedanā) que surge do conhecimento de ārammaṇa na forma de visões, gostos, cheiros, sons e tangíveis; ou seja, as sensações físicas.

A felicidade jhāna também é um sentimento (vedanā), um sentimento agradável (sukhavedanā), assim como a felicidade sensual. Ela difere porque o seu objeto (ārammaṇa) são objetos mentais (dhammārammaṇa): não sensações físicas, mas pensamentos, imagens mentais ou estados mentais. A felicidade jhāna tem dois níveis. O nível inicial tem a ‘materialidade’ (rūpadhamma) como objeto. Ela [a felicidade jhāna] é a felicidade que surge da concentração nas inspirações e expirações, por exemplo. O nível mais alto tem objetos imateriais como objeto. Ela é a felicidade que surge da concentração na vacuidade, por exemplo. (Em alguns casos, objetos mentais também são capazes de ser objetos de felicidade sensual.) Embora a felicidade jhāna não seja a felicidade que resulta de coisas materiais, ela ainda requer certos objetos (mesmo que não sejam materiais) e assim ela ainda é capaz de ser causa de apego (upādāna). Portanto, ela não é o tipo mais elevado de felicidade.

Nibbānasukha: a felicidade de nibbāna

O Budismo considera nibbāna a felicidade mais alta ou suprema (paramasukha).[5]

[5] Tipiaka: 25/25.

Nibbāna é uma experiência que cada pessoa tem que ter para ele mesmo – ou ela mesma. Aquele que a alcança pode descrevê-la para os outros, entretanto, os seus ouvintes não têm como saber o que a pessoa experienciou. Mesmo assim, o Buda falou sobre essa experiência e ela é relatada no Tipiṭaka. Estudiosos, tanto Budistas quanto não-Budistas, têm interpretado essas passagens de todas as maneiras, no entanto, há uma série de pontos centrais nessas interpretações.

O Budismo considera nibbāna a felicidade mais alta ou suprema (paramasukha).

Nibbāna é uma experiência que cada pessoa tem que ter para ele mesmo – ou ela mesma. Aquele que a alcança pode descrevê-la para os outros, entretanto, os seus ouvintes não têm como saber o que a pessoa experienciou.

Nibbāna é geralmente explicado como cessação, aqui significando a cessação de taṇhā, desejo, ou upādāna, apego. O Buda às vezes explicava nibbāna como o estado em que o desejo (rāga), aversão (dosa) e delusão (moha)[6] cessam. Quando uma pessoa ainda tem desejo, aversão e delusão, isso cria apego. O apego é o que faz com que as pessoas criem o mundo dando a ele significados e valores, como já foi dito.

Nibbāna é geralmente explicado como cessação, aqui significando a cessação de taṇhā, desejo, ou upādāna, apego.

[6] Tipiaka: 18/497.

O mundo não é visto como ele realmente é. Nibbāna é ver o mundo como ele realmente é, ao invés de como nós gostaríamos que ele fosse. Controlar a contaminação do desejo permite que as pessoas vejam o mundo como ele é: Aquele que reconhece todos os mundos, conhece todos os mundos como eles realmente são, separa a si mesmo a partir do mundo, não tem contaminações no mundo, controla todos os estados mentais e tem se livrado de todas as contaminações é aquele que experiencia nibbāna, que é a paz mais elevada…[7]

[7] Tipiaka: 21/23.

A frase ‘separa a si mesmo a partir do mundo’ não significa que para atingir nibbāna a pessoa tem que fechar os olhos e ouvidos e se recusar a saber qualquer coisa sobre o mundo exterior. Ainda há consciência no nível da realidade [awareness] do mundo exterior, entretanto, isso é uma consciência no nível da realidade [awareness] sem desejo, aversão e delusão, como em, por exemplo, ‘ao ver uma forma com o olho, ele não fica encantado ou ofendido, no entanto, permanece em equanimidade através da atenção plena e compreensão clara.’[8] Isso é ver com imparcialidade, não com raiva, ganância ou delusão. Ganância, raiva e delusão surgem como resultado do apego a um eu (ser, self) (attā), anexando um eu (ser, self) a todas as coisas.

Controlar a contaminação do desejo permite que as pessoas vejam o mundo como ele é: Aquele que reconhece todos os mundos, conhece todos os mundos como eles realmente são, separa a si mesmo a partir do mundo, não tem contaminações no mundo, controla todos os estados mentais e tem se livrado de todas as contaminações é aquele que experiencia nibbāna, que é a paz mais elevada…

[8] Tipiaka: 11/429.

Por exemplo, alguém doa dinheiro para uma causa de caridade porque espera que o seu nome seja impresso no jornal. Quando esse alguém não o vê, ele fica desapontado. Isso ocorre porque a doação foi feita com o eu (ser, self). Se a doação fosse feita simplesmente para ajudar os semelhantes sem nenhuma expectativa de nada em troca, não ver o seu nome no jornal não causaria sofrimento. Isso é ‘separar a si mesmo a partir do mundo’. Separando a si mesmo a partir do mundo, a pessoa ainda vive nesse mundo, entretanto, ela não está apegada: Monges, um lótus, um lótus vermelho, um lótus branco, cria raízes na água, cresce na água, eleva-se acima da água, no entanto, a água não gruda nele. Da mesma forma, o Tathāgata surge no mundo, cresce no mundo, no entanto, ele conquista o mundo. Ele não é manchado pelo mundo.[9]

[9] Tipiaka: 17/241.

Monges, um lótus, um lótus vermelho, um lótus branco, cria raízes na água, cresce na água, eleva-se acima da água, no entanto, a água não gruda nele. Da mesma forma, o Tathāgata surge no mundo, cresce no mundo, no entanto, ele conquista o mundo. Ele não é manchado pelo mundo.

Uma das características de quem atinge nibbāna é ‘nirāsa’. Phra Rājavaramunī explica isso da seguinte forma: a palavra significa literalmente ‘vazio de esperança’, mas na verdade ela deveria ser traduzida como ‘além da esperança’. Ou seja, seres comuns não iluminados vivem com esperança. Essa esperança é baseada no desejo. Pessoas que estão decepcionadas podem desistir da esperança porque sabem que não há como realizar a esperança delas. No fundo de seus corações, elas ainda desejam esse objeto, porém, elas não sabem como obtê-lo. Aqueles que estão além da esperança são aqueles que não têm desejos. Não há nada que eles necessitam esperar. Eles vivem sem a necessidade de esperança e são perfeitos e contentes consigo mesmos. É impossível para eles ficarem decepcionados.[10]

[10] Veja Phra Rājavaramunī, ​​Buddhadhamma (Bangkok: Mahāchulālongkorn University Press, 1986), p. 246.

A felicidade de nibbāna difere da felicidade sensual e da felicidade jhāna, pois as duas últimas são ‘sensações agradáveis’ (sukhavedanā); ou seja, são felicidade em resposta a certas coisas, certas coisas as alimentam e o que as alimenta são objetos (ārammaa). A felicidade jhāna se alimenta de objetos mentais (dhammārammaa), enquanto a felicidade sensual depende de todos os tipos de objetos, especialmente os cinco prazeres dos sentidos. Embora a felicidade jhāna seja independente de coisas materiais, ela ainda pode levar ao apego.

A mente não é realmente, totalmente pura. A felicidade de nibbāna é uma experiência que não depende de nenhum objeto. É um tipo sutil de felicidade perfeita em si mesma. Não é uma felicidade que surge ao alimentar um desejo ou preencher uma carência, mas uma felicidade que surge e existe por si mesma. É uma experiência em si mesma, não uma maneira de experienciar outra coisa. Ela não se preocupa com nada no mundo, nem mesmo com a experiência da vacuidade (do vazio), que é o tipo mais puro de experiência mental.

Phra Rājavaramunī explica que, embora alguém que atinge nibbāna seja alguém que tem felicidade, ele não estará apegado a nenhuma felicidade, nem mesmo à felicidade de nibbāna.

Quando o arahant conhece um objeto externo, ele ainda experiencia sentimentos contingentes a esse objeto, seja ele agradável, desagradável ou nem agradável nem desagradável, assim como as pessoas comuns. Entretanto, ele difere porque a sua experiência de sentimento é desprovida de impurezas. Para ele, o sentimento não leva ao desejo (tahā). Isso é uma experiência de sentimento físico, não de sentimento mental. Então, embora os seis objetos possam mudar, o arahant não experiencia sofrimento.[11]

[11] Ibid., p. 248.

Na prática para atingir nibbāna, há três estágios: moralidade (sīla), concentração (samādhi) e sabedoria (paññā). A moralidade é capaz de permitir que as pessoas experienciem a felicidade inicial, entretanto, por si só isso não pode levar à obtenção de nibbāna. A moralidade é uma provisão necessária para nibbāna, porém, isso não é suficiente. Ou seja, sem moralidade não é possível prosseguir para nibbāna, mas a moralidade por si só não é suficiente para levar alguém até lá. A moralidade ajuda a fazer com que a mente seja normal e prepará-la para o desenvolvimento da concentração, no entanto, a concentração por si só, novamente, não leva para nibbāna. Ela é capaz de trazer apenas a felicidade jhāna. O estágio final para atingir nibbāna é a sabedoria. A concentração prepara a mente para usar a sabedoria para contemplar as coisas como elas realmente são, para ver com insight (vipassanā).

A obtenção de nibbāna não é absorção com Deus porque nibbāna não é Deus. Nibbāna não criou o mundo e não sustenta o mundo em um sentido moral ou em termos de sua continuação. Nibbāna não é uma ‘entidade’, não é um objeto material ou mental.

O estágio final para atingir nibbāna é a sabedoria. A concentração prepara a mente para usar a sabedoria para contemplar as coisas como elas realmente são, para ver com insight (vipassanā).

Devas e seres do inferno são ‘entidades’. Embora pessoas comuns não sejam capazes de vê-los, pessoas que têm desenvolvido concentração a um certo nível são capazes de vê-los. Nibbāna não pode ser visto com o olho divino (dibbacakkhu), entretanto, pode ser visto com o olho da sabedoria (paññācakkhu). Portanto, nibbāna não é uma entidade como são o céu e o inferno.

Nos suttas, certas palavras são usadas para descrever nibbāna, o que pode levar à concepção de que nibbāna é uma entidade metafísica. Por exemplo, é dito que nibbāna tem as características de ser abhūta (imutável), akata (não criado), ajāta (não nascido) e amata (imortal).[12] Essas palavras nos convidam a pensar em nibbāna como algo eterno, não criado, existindo por si mesmo, não nascido de nada e continuando, ou seja, não morrendo.

[12] Tipiaka: 25/159.

Os textos de Abhidhamma encorajam ainda mais o entendimento de que nibbāna é uma entidade metafísica em sua divisão de realidades últimas (paramatthadhamma) em quatro categorias: materialidade (rūpa), mente (citta), concomitantes mentais (cetasika) e nibbāna,[13] convidando à dedução de que nibbāna é uma realidade última.

[13] Abhidhammatthasagaha, Divisão I.

No entanto, explicações que ocorrem em outras partes do Tipiṭaka não convidam de forma alguma à dedução de que nibbāna é uma entidade metafísica. As descrições de nibbāna dadas acima são mais propensas a se referir ao não retorno de alguém que atinge nibbāna para nascer ou morrer novamente, uma vez que ele transcendeu o ciclo de saṃsāra. O termo nibbāna é usado para descrever o estado da mente que transcendeu completamente o desejo e o apego. É um estado em que a mente experiencia certas coisas que não são capazes de ser experienciadas em uma vida para a qual a felicidade significa meramente a realização de desejos.

Pode-se dizer que Nibbāna é um estado psicológico — não um que seres comuns não iluminados conheçam, mas um experienciado apenas por aqueles que têm desenvolvido as mentes deles até um certo nível.

O termo nibbāna é usado para descrever o estado da mente que transcendeu completamente o desejo e o apego. É um estado em que a mente experiencia certas coisas que não são capazes de ser experienciadas em uma vida para a qual a felicidade significa meramente a realização de desejos.

Resumindo, o objetivo da vida de acordo com o Budismo é desenvolver a obtenção da felicidade o máximo que alguém é capaz de obter, a partir dos níveis mais baixos até os mais altos. Pessoas que vivem com moralidade têm um certo nível de felicidade, o desenvolvimento da concentração produz um tipo mais sutil de felicidade e, finalmente, o uso da sabedoria produz o tipo mais elevado de felicidade.

Comparação com a filosofia Ocidental

A filosofia Ocidental possui muitas ideias diferentes sobre o valor mais alto da vida, no entanto, elas podem ser divididas em dois grupos principais: aquelas que buscam o que é valioso no mundo exterior e aquelas que buscam o que é valioso internamente. Dentro do primeiro grupo estão os Românticos, que acreditam que a emoção é o valor mais alto, que a emoção é mais importante do que a razão porque conduz à expressão individual, que o bem e o mal são realidades convencionais e que a liberdade de expressão sem restrições é algo bom. Nós podemos ver claramente que esse tipo de pensamento está muito distante do Budismo.

Outra escola do primeiro grupo são os Hedonistas, que defendem que a felicidade, especialmente a felicidade física, é o valor mais alto, que todos os seres humanos buscam a felicidade e é impossível para eles buscarem qualquer outra coisa. Alguns dos pensadores importantes desse grupo, como Mill, tentaram dividir a felicidade em níveis baixos e altos, ou seja, felicidade física e mental, porém, eles afirmavam que o nível mais alto, a felicidade mental, era superior à felicidade inferior por ser mais estável, mais seguro e mais econômico, sendo, nesse caso, a diferença entre as duas meramente superficial e não substancial. Assim, a felicidade, na visão de Mill, corresponderia à felicidade sensual da interpretação Budista e o Hedonismo também é muito diferente do Budismo.

Entre aqueles que buscavam a felicidade interiormente está a escola conhecida como Estoicos. Eles acreditavam que a felicidade mental era a coisa mais valiosa da vida, que a paz de espírito não surgia da luta para encontrar objetos de desejo, mas sim da saciação do próprio desejo e que as pessoas deveriam dominar as suas mentes. Se ainda elas se iludirem com coisas externas e se apegarem demais a elas, elas experienciarão apenas decepção. A felicidade e o sofrimento estão na mente. Objetos externos não são capazes de realmente nos fazer nada se as nossas mentes forem fortes. Portanto, se ladrões assaltam a nossa casa e nós sofremos, nós não devemos ficar com raiva deles, porém, de nós mesmos por não sermos capazes de evitar a tristeza pela nossa perda.

A felicidade e o sofrimento estão na mente. Objetos externos não são capazes de realmente nos fazer nada se as nossas mentes forem fortes.

Essa ideia é muito semelhante ao Budismo. Os Estoicos diferem porque eles ensinavam as pessoas a se separarem do desejo e isso era tudo. Eles não ofereciam um tipo diferente de experiência que as pessoas pudessem obter. Ou seja, os ensinamentos deles abordavam apenas o aspecto negativo da experiência, não o positivo. No Budismo, contudo, os seres humanos são capazes de experienciar dois níveis mais elevados de felicidade: a felicidade jhāna e a felicidade nibbāna, a felicidade que surge da concentração e a felicidade que surge da sabedoria. A paz, segundo os Estoicos, embora implicasse a fuga das coisas materiais, estava, no entanto, relacionada a elas. A felicidade jhāna e a felicidade nibbāna do Budismo, por outro lado, são novas, um tipo diferente de experiência psicológica, bem diferente do tipo normal.

Nesse segundo grupo estão os ‘Intelectuais’, um termo que pode ser usado para se referir a visões de natureza Aristotélica. Aristóteles afirmou que o que tem valor na vida é a felicidade, que pode ser dividida em três níveis. O primeiro nível é a felicidade da criatura, a felicidade que surge a partir de comer e dormir. O segundo nível é a felicidade humana, a felicidade que as pessoas obtêm a partir de viverem juntas em sociedade, como amizade, honra, demonstrações de bravura e expressões de justiça. De acordo com o Budismo, ambas estão incluídas na felicidade sensual.

Aristóteles chamou o nível mais elevado de felicidade de ‘visão superior’, que significa realização. Isso é a visão que surge da sabedoria pura, não do conhecimento usado para buscar os dois primeiros tipos de felicidade. Ela é um ‘descanso’ obtido por meio da sabedoria, não um descanso físico ou mental tomado para continuar a atividade revigorado, que é o descanso com um objetivo ulterior. A visão superior é o verdadeiro descanso em si mesmo, sem nenhum objetivo ulterior. Ela é o desfrute da felicidade por si só, uma experiência que é perfeita em si mesma, não necessitando de nada mais para a sua sustentação. Aristóteles chamou à visão superior ‘felicidade celestial’.[14]

[14] Aristóteles, The Ethics of Aristotle (Londres: Penguin Books, 1956), pp. 303-309.

A felicidade Aristotélica é muito próxima da felicidade jhāna e da felicidade nibbāna no Budismo e seria muito difícil para alguém sem experiência em ambas dizer se são iguais ou diferentes. Elas são semelhantes no sentido de que a felicidade jhāna do Budismo é uma forma de descanso para aqueles que desenvolveram a concentração até certo nível. Nibbāna e visão superior são ambas ‘ver’ com sabedoria, experiências que são perfeitas em si mesmas, sem necessidade de apoio de nada mais. Mas onde elas diferem é que o Budismo organiza e analisa métodos para atingir esse ponto em detalhes, enquanto Aristóteles não apresenta nenhum método, acreditando que sempre que há uma busca pela verdade por si só, sem segundas intenções, isso é busca por uma visão superior.

Critérios para ações

Em relação aos critérios Budistas para julgar se as ações devem ou não devem ser realizadas, se elas são boas ou más, pode-se dizer, de forma ampla, que uma boa ação é qualquer ação que surge das raízes da habilidade (kusalamūla) da não-ganância, da não-raiva e da não-delusão, que tornam a mente clara, pura, calma e imperturbável, enquanto ações más são ações que surgem das raízes da inabilidade (akusalamūla) da ganância, do ódio e da delusão, que tornam a mente perturbada, agitada, obscura e impura.[15]

[15] Veja Phra Rājavaramunī, ​​Buddhadhamma, pp. 162-180.

Esses são os critérios básicos. Há outros fatores que necessitam ser levados em consideração, como serão discutidos a seguir. O autor sente que, se a visão Budista sobre o assunto for comparada com as visões de vários filósofos renomados, ela será vista com mais clareza.

Budismo e Kant

O eticista mais eminente do mundo é o filósofo Alemão Immanuel Kant (1724-1804). A ideia ética dele é muito semelhante, mas não exatamente igual, à visão Budista. Ele sentia que a coisa mais valiosa na vida não era a felicidade (com a qual se referia ao que o Budismo chama de kāmasukha), mas a moralidade ou as boas ações. Boas ações nunca têm que surgir a partir da emoção, independentemente de serem positivas ou negativas.

Ajudar alguém necessitado por piedade não é uma ação moralmente boa, pois a piedade é uma emoção. Ações moralmente boas têm que surgir da razão e da sabedoria. Uma pessoa que age com sabedoria é alguém que se livra completamente de suas emoções, instintos e interesses próprios e se apega à lei moral. A lei moral de Kant é ‘Siga o princípio que você gostaria de ver como uma lei universal’. Isso significa que, ao decidir fazer alguma coisa, é preciso aderir a algum tipo de princípio como diretriz. Se, ao realizar essa ação, alguém deseja que o princípio ao qual está aderindo seja seguido por todas as pessoas, a ação está correta; entretanto, se alguém deseja seguir esse princípio sozinho, a ação está errada. Se alguém fosse supervisor de um determinado emprego e ajudasse um de seus parentes a conseguir um emprego, sabendo muito bem que esse parente não era tão bom quanto outra pessoa, aderindo ao princípio ‘Ajude os seus parentes, seja ele justo ou injusto’, então essa é uma ação errada, porque não é possível que alguém queira que esse princípio seja seguido por todas as pessoas. Alguém desejaria que outras pessoas seguissem o princípio ‘Histórias de imparcialidade têm precedência sobre parentesco e partidarismo’.

Kant e o Budismo são a mesma coisa, pois ambos são ‘Absolutistas’. Absolutismo é a ideia de que uma ação é boa ou má não pelos resultados a que conduz, mas porque obedece a certos critérios fixos e absolutos. Assim que a ação é realizada, pode ser determinada como boa ou má sem ter que esperar para ver se os seus resultados são bons ou maus. Nesse sentido, as religiões Teístas são Absolutistas, pois boas ações são ações que se conformam ao decreto de Deus. Deus e os seus decretos são fixos e absolutos, eles não mudam com o tempo e o lugar. A filosofia de Kant era Absolutista porque ele via boas ações como ações que se conformavam à lei moral e a lei moral é fixa e absoluta, pois não foi concebida pelos seres humanos para se adequar a um determinado tempo. Ela é, antes, uma lei que se conforma ao cerne da natureza humana, que é a sabedoria. A sabedoria é o verdadeiro elemento de todos os seres humanos, mesmo que diferentes pessoas a utilizem em graus variados.

O Budismo é Absolutista, pois as três raízes da habilidade e as três raízes da inabilidade são os critérios fixos e absolutos para julgar ações. Dizer que as três raízes da habilidade são critérios para julgar ações equivale a dizer que nibbāna é o critério para julgar ações. Ações que levam a nibbāna podem ser chamadas de boas ações, enquanto ações que se afastam do nibbāna podem ser chamadas de más ações.

Nibbāna é akāliko, além do tempo. Embora nibbāna não seja uma entidade metafísica, nibbāna é um estado de natureza fixa. Ela não muda de acordo com os sentimentos e pensamentos das pessoas. Em relação aos resultados das ações, embora o Budismo não considere os resultados como um princípio para julgar as ações, eles devem ser levados em consideração (como será discutido a seguir). Para Kant, os resultados não são levados em consideração afinal.

Sociedades de diferentes épocas e lugares podem ter leis, costumes e tradições diferentes. Elas recompensam ações que se conformam a essas convenções e punem ações que se opõem a elas. Essas recompensas ou punições podem ser físicas, mentais ou sociais.

Embora as pessoas que vivem em sociedades diferentes possam ter vidas sociais diferentes, todas são pessoas iguais. Como pessoas, elas vivem sob a mesma lei moral: as pessoas que fazem coisas sem ganância, ódio e delusão são transparentes, as suas mentes são puras e conduzem à obtenção de nibbāna, então as suas ações são consideradas boas, enquanto as pessoas que fazem coisas com mentes cheias de ganância, ódio e delusão são confusas, as suas mentes são impuras e não conduzem à obtenção do nibbāna, então as suas ações são erradas.

A moralidade de uma sociedade pode ou não estar em conformidade com a lei moral natural. As coisas que uma sociedade considera boas podem levar à impureza mental, fazer com que as pessoas sejam mais agitadas e mais contenciosas e levar a um aumento da ganância, do ódio e da delusão. Se assim for, então elas são boas de acordo com a sociedade, mas erradas de acordo com a lei moral natural. Por exemplo, embora o consumo de álcool seja aprovado pela sociedade, ele tem um efeito negativo na mente e, portanto, é errado. Às vezes, as convenções sociais estão em conformidade com as leis morais: o roubo, por exemplo, é errado tanto social quanto moralmente. Ações erradas são sempre erradas, estejam os seus perpetradores cientes ou não de que eles estão fazendo alguma coisa errada. Na Milindapañha, a pergunta é feita: quem incorrerá em mais dano entre uma pessoa que faz alguma coisa sabendo que é errado e conhecendo as suas consequências e outra pessoa que não sabe. A resposta é que a pessoa que não sabe incorre em mais dano. Isso parece estranho porque uma pessoa que infringe a lei pode obter clemência se não a souber. Contudo, tais questões não podem ser comparadas com leis sociais. Elas têm que ser comparadas com a realidade natural:

Há uma bola de ferro que tem sido queimada e está em brasa. Uma pessoa sabe que é ferro em brasa, a outra não: se ambas as pessoas fossem obrigadas a segurar a bola de ferro em brasa, qual delas a agarraria com mais força e seria queimada mais gravemente?

A pessoa que sabia a agarraria com firmeza? Somente a que não sabia a agarraria completamente e assim ela seria queimada mais gravemente.

Da mesma maneira… aquele que não sabe que as ações são erradas e quanto mal há nelas não tem escrúpulos e pode fazer plenamente o que ele quiser. Ele é capaz de cometer até mesmo ações muito más, sem saber que, ao fazê-las, ele tem que receber um resultado terrível… Por essa razão eu digo que aquele que não sabe incorre em mais dano.[16]

[16] Milindapañha (Thai Version), pp. 107-108.

Segundo o Budismo, tudo o que as pessoas fazem elas têm que sofrer as consequências, independentemente do que elas ou a sociedade sintam a respeito disso. O certo e o errado são fixos e absolutos. Outro ponto em que o Budismo e Kant têm visões muito semelhantes é a ideia de que quem pratica boas ações é alguém que transcendeu a visão de ‘eu e meu’, como já foi dito. Para Kant, a pessoa que pratica o bem é aquela que está totalmente preparada para que o princípio ao qual ela adere ao praticar essa ação vem a ser um princípio para todas as pessoas.

Nós poderíamos dizer que ela está preparada para que o seu princípio pessoal de ação venha a ser um princípio universal. O transgressor deseja um privilégio especial; ele deseja que o princípio ao qual se apega se aplique apenas a si mesmo e um princípio diferente se aplique a outras pessoas. A visão de Kant, portanto, reduz o próprio senso de autoimportância, reduzindo o ‘eu’ (‘ser’, ‘self’) a um status igual ao dos outros.

No Budismo, as ações humanas têm dois tipos de motivações. A primeira são as três raízes da inabilidade (ganância, raiva, delusão); a segunda são as três raízes da habilidade (não-ganância, não-raiva, não-delusão). As ações que surgem das raízes da inabilidade são ações realizadas sob o controle do sentimento do eu (ser, self):

Para qualquer ação que seja guiada pela ganância, surgida a partir da ganância, que tenha a ganância como causa, que tenha a ganância como fonte, o estado do eu (ser, self) nessa ação surge e a ação produz resultados. Quando os resultados surgem, o agente experiencia os resultados dessa ação… para qualquer ação que seja guiada pela aversão… para qualquer ação que seja guiada pela delusão… um estado do eu (ser, self) surge nessa ação…[17]

[17] Tipiaka: 20/473.

Ganância, raiva e delusão levam ao sentimento do eu (ser, self). Essas três motivações para a ação não podem ser separadas do eu (ser, self) ou do ‘mim’. A ganância tem o ‘mim’ como base de sustentação, a raiva tem o mim em seu cerne e a delusão é a tolice e a delusão em ‘mim’. Ganância, raiva e delusão são, portanto, apenas três expressões diferentes do ‘mim’. Ações que são livres de ganância, raiva e delusão ‘alcançam a cessação, são arrancadas e transformadas em um toco de palmeira, sem chance de ressurgir’. Isso significa que elas levam à fuga do ciclo de saṃsāra e, finalmente, ao nibbāna. Assim, nós somos capazes de interpretar ações erradas como ações que implicam um eu (ser, self) e ações corretas como ações realizadas sem um eu (ser, self).

Aqueles que de fato praticam o bem supremo são aqueles que veem com a sabedoria correta que ‘isso não é meu, eu não sou isso, isso não é o meu eu (ser, self)’. Budismo e Kant são semelhantes nesse ponto apenas parcialmente. Kant acreditava em Deus e que os seres humanos tinham uma alma imortal.

Ele não ensinava anatta (não-eu (ser, self)) como o Budismo. Segundo o Budismo, o não-eu (não-ser, não-self) é uma realidade natural, mas a maioria das pessoas está iludida. Elas têm que retornar à realidade.

A ideia de Kant pode levar ao problema de, já que existe um eu (ser, self), como isso é capaz de ser reduzido, mas o problema está além do escopo desse artigo.

Um ponto interessante a ser considerado em relação ao Budismo e a Kant é o papel da sabedoria na moralidade. Kant acreditava que os seres humanos possuíam duas motivações para as ações: sabedoria e impulso, sendo esse último referente ao instinto, aos interesses próprios e aos traços de caráter criados pelo aprendizado e pelas influências ambientais. Enquanto os seres humanos viverem sob o domínio dos impulsos, eles não se conduzirão de acordo com as leis morais, entretanto, uma vez que eles tenham transcendido esses impulsos, eles se conduzirão de acordo com a sabedoria, o que fará com que todas as pessoas vejam harmoniosamente o certo e o errado. Existem também duas motivações no Budismo (cada uma delas subdividida em três):

Monges, existem três condições que causam o surgimento das ações. A ganância é uma fonte de ações, a aversão é uma fonte de ações, a delusão é uma fonte de ações… Existem outras três condições que causam o surgimento das ações. A não-ganância é uma fonte de ações, a não-aversão é uma fonte de ações, a não-delusão é uma fonte de ações…[18]

[18] Tipiaka: 20/473.

O primeiro tipo de motivação são as três raízes da inabilidade. O segundo tipo de motivação são as três raízes da habilidade. As raízes da inabilidade, que são a ganância, a raiva e a delusão, podem ser comparadas ao impulso de Kant. Os Budistas as chamam de impulsos humanos básicos ou impurezas (kilesa). As raízes da inabilidade surgem da ignorância (avijjā) e do apego ao eu (ser, self). Elas são os impulsos que carecem de reflexão racional. As três raízes da habilidade são a sabedoria, que o Budismo considera um importante potencial humano capaz de desenvolvimento contínuo até a obtenção final de nibbāna.

O ponto de diferença é que, para Kant, a sabedoria é algo dado aos seres humanos pela natureza para usar na oposição aos impulsos. A moralidade é um estado de atrito entre a sabedoria e os impulsos. Ações morais têm que envolver resistência entre as duas motivações, nas quais a sabedoria é o lado vencedor. Ações nas quais não há resistência entre as duas motivações não têm valor moral. Por exemplo, quando um homem se obriga a ajudar um inimigo em perigo, isso demonstra que a sabedoria resistiu com sucesso aos impulsos. Se ele agisse de acordo com os seus impulsos, ele teria deixado o seu inimigo para ser destruído. A sua consciência do certo e do errado foi despertada, levando-o a refletir que as pessoas devem ajudar umas às outras. Mas suponha que houvesse outra pessoa que, seja por dom natural ou por treinamento, sempre ajudasse os seus semelhantes, não importando quem eles fossem. Para ele, ajudar um inimigo seria uma ação natural. Não haveria resistência entre o que ele deveria fazer e o que ele queria fazer. Nesse caso, Kant consideraria a ação como sem valor moral.[19] É como a chuva caindo naturalmente — nós não necessitamos elogiá-la quando ela nos permite plantar coisas ou condená-la quando ela causa uma inundação.

[19] Immanuel Kant, Fundamental Principles of the Metaphysics of Morals (New York: The Little Library of Liberal Arts, 1941), pp. 15–16.

No Budismo, a pessoa ideal, aquela que tem atingido nibbāna, tem superado a resistência entre as raízes da habilidade e as raízes da inabilidade. É natural que as raízes da inabilidade não venham a atormentá-lo e que as raízes da habilidade sejam as guias de suas ações, são naturais. A sua liberação é absoluta. Phra Rajāvaramunī escreve que aquele que atingiu nibbāna ‘possui verdadeiro altruísmo, de um tipo que é um produto natural de ter destruído o apego ao eu (ser, self) com a sabedoria que vê a verdadeira natureza das coisas… Como isso é uma manifestação que surge naturalmente, ele é capaz de agir altruisticamente sem ter que se forçar’. [20] De fato, as ideias do Budismo e de Kant podem não ser tão diferentes quanto elas parecem ser.

[20] Phra Rājavaramunī, ​​Buddhadhamma, p. 274.

Kant pode não ter acreditado que a sua pessoa hipotética — alguém que, desde o nascimento, ajudaria todas as pessoas (mesmo os inimigos) sem ter que se forçar — pudesse realmente existir. O Budismo pode não acreditar que uma pessoa pudesse ser assim desde o nascimento, no entanto, ele acredita que uma pessoa é capaz de se treinar a um nível em que não precisa mais se forçar e a bondade vem a ser a sua própria natureza. Kant provavelmente acreditava que, entre as pessoas comuns, não haveria ninguém que pudesse ir além do nível de ter que resistir, porque, se existisse tal pessoa, Kant a veria como um Deus amoroso.

Kant defendia essa resistência ou forçar como sofrimento. A natureza fornece aos seres humanos sabedoria, bem como os impulsos básicos. Para Kant, o fato de a natureza ter fornecido sabedoria aos seres humanos demonstra que a natureza não pretendia que os seres humanos fossem felizes.[21] A natureza queria que os seres humanos fossem ‘criaturas morais’. O que tem o maior valor na vida não é a felicidade, seja ela física ou mental, mas ser uma criatura moral, ser alguém que tem um senso constante de certo e errado, bem e mal. Quando as pessoas seguem os desejos de seus impulsos, elas são felizes, mas a sabedoria é a ‘chave na engrenagem’ que resiste aos impulsos e essa resistência às vezes faz as pessoas sofrerem.

[21] Immanuel Kant, op. cit., pp. 12–13.

Na vida real, uma pessoa boa não necessita ser feliz. Por essa razão, Kant passou a acreditar que Deus tem que existir e que a consciência no nível da percepção [consciousness] (alma) tem que ser imortal, porque, se assim não fosse, a pessoa boa e a felicidade, que deveriam andar juntas, jamais se encontrariam.

O Budismo afirma que uma pessoa boa experienciará felicidade, aqui significando felicidade mental. Uma pessoa boa é aquela que é motivada pela sabedoria ou por raízes hábeis. Tal pessoa terá clareza mental. O Budismo chama a pessoa que conquista o desejo com sabedoria de ‘auto conquistador’. Ela é aquela que possui felicidade mental, com a mente calma e tranquila. Kant exagera em sua ideia de que resistência é sofrimento. Conquistar a própria mente leva a um certo tipo de felicidade mental. Kant também difere por considerar a sabedoria como uma causa para as pessoas alcançarem a virtude e a moralidade, que para ele são as coisas mais excelentes da vida, entretanto, para o Budismo a moralidade é simplesmente uma qualidade de valor elementar. Embora a sabedoria seja capaz de fazer com que as pessoas sejam morais, ela é capaz de levá-las além disso, a outro tipo de experiência chamada nibbāna, que está além da capacidade normal da maioria das pessoas, porém, é algo que, de acordo com o Budismo, pode ser alcançado.

Budismo e Utilitarismo

O filósofo que fez com que o Utilitarismo fosse amplamente conhecido e influente no pensamento ético foi o Inglês John Stuart Mill (1806-1875). A sua doutrina sustentava que uma ação era considerada certa ou errada com base em quantas pessoas se beneficiavam dela: quanto mais pessoas se beneficiavam, melhor. Isso é chamado de princípio da maior felicidade. A mesma ação, praticada em sociedades de diferentes localidades, ou em diferentes épocas, ou em diferentes ocasiões, pode beneficiar diferentes números de pessoas, ou em uma situação pode levar à felicidade, mas em outra, ao sofrimento. Assim, é possível que, em algumas situações, uma determinada ação seja considerada boa, mas em outras considerada ruim, ou às vezes muito boa, às vezes apenas moderadamente boa, dependendo da felicidade ou do sofrimento que produz. A doutrina do Utilitarismo é, portanto, Relativista: diferentemente do Absolutismo, que sustenta que os fatores decisivos são fixos, ela sustenta que o bem e o mal não são fixos devido à flutuação dos fatores determinantes.

Algumas partes dos ensinamentos Budistas sugerem a dedução de que o Budismo é relativista. Por exemplo, ao ajudar os outros ou praticar a generosidade, de acordo com os ensinamentos Budistas, o mérito ‘que surge a partir da doação tem quantidades diferentes. Por exemplo, se a pessoa que doa é moral, mas a pessoa que recebe não, há apenas uma quantidade moderada de mérito. Se nem a pessoa que doa nem a que recebe são morais, muito pouco mérito é obtido. Se a pessoa que doa não é moral, mas a pessoa que recebe é moral, há uma quantidade moderada de mérito. Se tanto a pessoa que doa quanto a que recebe são morais, há uma grande quantidade de mérito, como semear sementes de boa qualidade em terra boa: elas amadurecerão e se tornarão um bom fruto para o semeador.’[22]

[22] Veja Phra Sobhonkhanaphorn, Respondendo a Perguntas sobre o Budismo, pp. 40–41.

Phra Rājavaramunī explica, com a ajuda a partir dos Comentários (Commentaries), que matar seres vivos acarreta diferentes quantidades de culpa (ou erro) dependendo de diferentes fatores. Matar um animal de trabalho acarreta mais culpa do que matar um animal feroz. Matar um arahant acarreta mais culpa do que matar um ser não iluminado. Quanto mais esforço despendido no ato de matar, mais injustiça é cometida. Matar com raiva acarreta mais culpa do que matar em legítima defesa. Mentir acarreta mais ou menos culpa, dependendo dos interesses que são prejudicados e se se trata de um assunto importante ou secundário. Por exemplo, se um ladrão nos pede dinheiro e dizemos que não temos dinheiro, incorremos em pouca culpa, mas se nós somos uma testemunha que presta falso testemunho, nós incorremos em muita injustiça. A violação sexual acarreta mais ou menos culpa, dependendo da virtude da pessoa violada.[23]

Matar com raiva acarreta mais culpa do que matar em legítima defesa.

[23] Phra Rājavaramunī, ​​Buddhadhamma, p. 773

A partir do exposto, algumas pessoas podem chegar à conclusão de que o Budismo é relativista, acreditando que o bem e o mal mudam de acordo com vários fatores, mas, em última análise, o Budismo é Absolutista. Dar a quem necessita é sempre certo; matar é sempre errado. Outros fatores apenas enfraquecem o certo ou o errado, assim como colocar um pedaço de sal em um rio não faz com que a água seja tão salgada quanto colocar o mesmo pedaço em um copo d’água, mesmo que a salinidade surja no rio. No entanto, se o erro é grande ou pequeno ainda é uma questão em aberto, pois nós estamos falando de mérito (puñña) e demérito (pāpa), que são preocupações da roda do saṃsāra. Obter muito mérito significa renascer em um destino muito bom, enquanto obter muito demérito significa renascer em um destino muito inferior. No entanto, em termos de destinação ou padrão mais elevado do Budismo, dar com uma mente livre de ganância, raiva e delusão, independentemente de quem recebe, faz com que a mente seja pura, clara e pacífica e isso certamente tem que ser um tipo de bem.

Mill, um dos mais importantes pensadores Utilitaristas, pensava que a motivação mental por trás de uma ação não tem consequências na determinação de sua bondade ou maldade. Ele citou o exemplo de um homem que salva outro de um afogamento, cuja ação é moralmente correta, independentemente de sua motivação ser a expectativa de recompensa ou puro Humanitarismo sem qualquer pensamento de recompensa. Kant provavelmente consideraria ajudar por meio da expectativa de recompensa como um mero investimento desprovido de qualquer valor moral. O Budismo provavelmente concordaria mais com Kant do que com Mill. Ajudar para obter alguma coisa em troca certamente não é mal, entretanto a ação tem surgido a partir de uma raiz inábil, que nesse caso é o desejo de obter dinheiro. Portanto, nós não poderíamos chamar a ação de verdadeiramente boa e ela não teria o efeito de criar paz e clareza na mente.

Mill sustentava que o fator decisivo para determinar se uma ação era boa ou má era o resultado a que ela levava e esse resultado tem que ser visível. A motivação mental é um atributo pessoal conhecido apenas por quem a realiza. Olhar apenas para os resultados visíveis da ação pode nos permitir argumentar convincentemente sobre o bem e o mal. Para o Budismo e Kant, os resultados dependem da motivação mental, que é o principal fator decisivo na ação e a motivação é alguma coisa que somente aquele que realiza a ação é capaz de conhecer.

Budismo e Hobbes

Uma comparação da ética Budista com o pensamento de outro filósofo pode nos ajudar a entender mais claramente a posição Budista. Thomas Hobbes (1588-1679) questionou: ‘Por que nós ajudamos outra pessoa? Por que nós consideramos os interesses dos outros?’ A resposta dele foi ‘para os nossos próprios interesses’. Ele observou que fazer coisas que beneficiassem os outros era indiretamente ajudar a si mesmo. Se nós não ajudássemos uns aos outros, a sociedade entraria em crise e nós não poderíamos ser felizes e quando nós passássemos por momentos difíceis, ninguém nos ajudaria. Os seres humanos são dominados por instintos egoístas.

Eles precisam dar um pouco, caso contrário, eles seriam forçados a dar mais. As pessoas não devem se envergonhar de serem egoístas, pois não há escolha. Kant certamente não concordaria com essa resposta. A sua resposta foi que a natureza forneceu sabedoria à humanidade, não para que as pessoas pudessem se aproveitar umas das outras, mas para suprimir os seus instintos e viessem a ser pessoas boas e morais. A sabedoria ajuda as pessoas a ver que agir de acordo com a lei moral (como ajudar os semelhantes) é uma maneira de se tornar uma pessoa verdadeira, alguém que está acima dos animais, por meio da moralidade.

Mill também tentou responder a essa pergunta. Para Mill, a questão de por que nós devemos nos preocupar em ajudar os outros é importante, pois ele acreditava que boas ações eram ações úteis à maioria. Ele dedicou o terceiro capítulo de seu livro Utilitarismo a uma análise dessa questão. A sua resposta foi que a ideia de que nós devemos ajudar os outros é simplesmente um sentimento. Dentro dos seres humanos, existe uma tendência de as pessoas se ajudarem mutuamente e viverem juntas em harmonia, compartilhando as alegrias e tribulações umas das outras. Para as pessoas que não têm esse sentimento, a educação pode ajudar a produzir isso.

O Budismo ensina a doar-se aos outros. Seres comuns não iluminados têm diferentes motivações para as ações, no entanto, ‘Os sábios (paṇḍita) não doam para obter upadhisukha (felicidade manchada por impurezas mentais), mas para eliminar as impurezas.’[24] Ou seja, os sábios doam coisas e ajudam os outros para purificar as mentes deles e, assim, aproximá-los de nibbāna. Há quem se pergunte se isso é uma espécie de egoísmo. Um estudioso Ocidental, por exemplo, sentia que, para o Budismo, matar era errado não porque implicasse destruir outra vida ou criar inquietação na sociedade, mas porque isso perturbava a paz de espírito de quem mata.[25] Se nós considerarmos dessa forma, nós teremos que decidir se é egoísmo doar não para ajudar outros seres, mas para ajudar a própria mente a ser pacífica e pura e a conduzi-la à nibbāna, que é a libertação pessoal.

[24] Tipiaka: 29/825.

[25] Winston King, In the Hope of Nibbāna, (La Salle: Open Court, 1964), p. 72.

Há passagens nos textos que podem induzir ao mal-entendido de que o Budismo ensina as pessoas a darem mais peso aos seus próprios interesses do que aos dos outros, mas se tais passagens forem lidas com atenção, tal mal-entendido não surgirá. No Dhammapada, por exemplo, há a declaração ‘Não comprometa os próprios interesses em benefício dos outros’.[26] E no Aṅguttara Nikāya é dito que as pessoas nesse mundo podem ser divididas em quatro grupos da seguinte forma: (1) Aqueles que não praticam nem para o seu próprio benefício nem para o benefício dos outros. (2) Aqueles que não praticam para o seu próprio benefício, mas para o benefício dos outros. (3) Aqueles que praticam para o seu próprio benefício, mas não para o benefício dos outros. (4) Aqueles que praticam tanto para o seu próprio benefício quanto para o benefício dos outros. Ele continua afirmando que o primeiro grupo é o de menor virtude, o quarto grupo é o de maior virtude, enquanto entre o segundo e o terceiro grupos, o Buda considera (3) como melhor do que (2).[27] Parece estranho que o Buda tenha ensinado que aquele que pratica para o seu próprio benefício, mas não para o benefício dos outros, é melhor do que aquele que pratica não para o seu próprio benefício, mas para o benefício dos outros.

[26] Tipiaka: 25/22.

[27] Tipiaka: 21/95.

No entanto, se nós entendermos ‘o próprio benefício de alguém’ e ‘o benefício dos outros’ no sentido Budista, nós entenderemos o problema com mais clareza. Existem dois tipos de benefício: físico e mental. Coisas que trazem benefício físico são limitadas em número: o ganho de uma pessoa é a perda de outra, ou pelo menos um obstáculo ao seu ganho. Coisas que trazem benefício mental não são limitadas. Quando uma pessoa as obtém, outras ainda podem obtê-las, ou pelo menos não são impedidas de obtê-las.

De acordo com o Budismo, benefício significa benefício mental, não benefício físico. O Buda prosseguiu explicando que aquele que pratica para o seu próprio benefício, mas não para o benefício dos outros, é aquele que pratica para eliminar a ganância, a raiva e a delusão em si mesmo, mas não encoraja os outros a fazê-lo. Aquele que não pratica para o seu próprio benefício, mas que pratica para o benefício dos outros, é aquele que não pratica para eliminar a ganância, a raiva e a delusão em sua própria mente, mas encoraja os outros a fazê-lo.[28]

[28] Tipiaka: 21/96.

Portanto, não é estranho que o terceiro tipo de pessoa seja melhor do que o segundo tipo: como pode alguém que não elimina as suas próprias impurezas encorajar outros a fazê-lo?

Quem busca benefício material para si contribui para a perda do benefício material de outras pessoas (e talvez, indiretamente, do benefício mental também), no entanto, quem busca benefício mental para si tem que abrir mão do benefício material, assim ele está contribuindo para o benefício material dos outros (e indiretamente para o benefício mental deles). Assim, existe o quarto tipo de pessoa, aquela que pratica para o seu próprio benefício e o benefício dos outros e o Budismo considera tal pessoa a melhor de todas.

[Traduzido da versão Tailandesa por Bruce Evans]

Imagem: pexels-sarbajitsenphotography-3524537-08.04.2025-Foto-de-Sarbajit-Sen.jpg

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A Espiritualidade nas Empresas trata-se de uma Filosofia cujos Princípios são capazes de ajudar tanto as Pessoas quanto as Organizações.

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Autor

Graduação: Engenharia Operacional Química. Graduação: Engenharia de Segurança do Trabalho. Pós-Graduação: Marketing - PUC/RS. Pós-Graduação: Administração de Materiais, Negociações e Compras - FGV/SP. Blog Projeto OREM® - Oficina de Reprogramação Emocional e Mental - O Blog aborda quatro sistemas de pensamento sobre Espiritualidade Não-Dualista, através de 4 categorias, visando estudos e pesquisas complementares, assim como práticas efetivas sobre o tema: OREM1) Ho’oponopono - Psicofilosofia Huna. OREM2) A Profecia Celestina. OREM3) Um Curso em Milagres. OREM4) A Organização Baseada na Espiritualidade (OBE) - Espiritualidade no Ambiente de Trabalho (EAT). Pesquisador Independente sobre Espiritualidade Não-Dualista como uma proposta inovadora de filosofia de vida para os padrões Ocidentais de pensamentos, comportamentos e tomadas de decisões (pessoais, empresariais, governamentais). Certificação: “The Self I-Dentity Through Ho’oponopono® - SITH® - Business Ho’oponopono” - 2022.

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