Série de artigos – A Ética Budista nos Negócios.
Estamos destacando trechos do artigo “A Concept of Rights in Buddhism” [“Um Conceito de Direitos no Budismo”], de autoria de Somparn Promta, visando o conhecimento e o entendimento sobre o sistema de pensamento (ética, princípios e valores), o sistema organizacional (ambiente de trabalho, de relacionamentos e de políticas) e o sistema de tomada de decisões (propósitos, resultados e metas) de uma Organização Baseada na Espiritualidade (OBE), sendo esse tipo de Organização uma tendência global irreversível para as pequenas, as médias e as grandes Empresas, em quaisquer mercados de atuação, que visam a agregação de valor para todos os envolvidos e a sua própria perenidade.
Fonte:
The Chulalongkorn Journal of Buddhist Studies – An Academic Journal Devoted to the Academic Study of Buddhism [The Chulalongkorn Journal of Buddhist Studies – Um Periódico Acadêmico Dedicado ao Estudo Acadêmico do Budismo].
Publicado por Center for Buddhist Studies [Centro para Estudos Budista] – Universidade Chulalongkorn, Tailândia.
Conselho Consultivo
- Phra Dhammakosacharn
- Wit Wisadavet
- Sunthorn Na-rangsi
- Preecha Changkhwanyuen
- Mark Tamthai
- Donald K. Swearer
Editor
Somparn Promta – [email protected]
Site: The Chulalongkorn Journal of Buddhist Studies
Tradução livre Projeto OREM® (PO)
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THE CHULALONGKORN JOURNAL OF BUDDHIST STUDIES
An Academic Journal Devoted to the Academic Study of Buddhism
Published by Center for Buddhist Studies
Chulalongkorn University
Volume 1-3
[2002-2004]
EDITED BY
Somparn Promta
Department of Philosophy
And Center for Buddhist Studies
Chulalongkorn University
Bangkok, Thailand
SUMÁRIO
- From the Editor [I] – Somparn Promta
- Theravāda Buddhist Ethics [1] – Wit Wisadavet
- A Concept of Rights in Buddhism [17] – Somparn Promta
- Business and Buddhist Ethics [39] – Subhavadee Numkanisorn
- Administration of the Thai Sangha [59] – Sunthorn Na-rangsi
- The Application of Buddhist Ethics to Thai Society [75] – Preecha Changkhwanyuen
- Buddhist Perspectives on Health and Healing [93] – Wichit Paonil and Luechai Sringernyuang
- Consumerism, Prostitution, and Buddhist Ethics [107] – Phra Somsak Duangsisen
- Dhammic Socialism: Political Thought of Buddhadāsa Bhikkhu [115] – Preecha Changkhwanyuen
- How Should We Understand the Dhamma [139] – Buddhadāsa Bhikkhu and M.R. Kukrit Pramoj
- The Buddhist Philosophy of Education [159] – Wit Wisadavet
- Buddhadāsa Bhikkhu and Dhammic Socialism [189] – Tavivat Puntarigvivat
- Going Forth in Thai Society [209] – Chamnong Adiwathanasiddhi
- Political Beliefs of the Thai Sangha [219] – Pholsak Jirakraisiri
- Buddhism and Human Genetic Research [233] – Somparn Promta
- Buddhist Analysis of Capitalism [247] – Preecha Changkhwanyuen
- Boonnoon’s Critique of Thai Sangha [261] – Pagorn Singsuriya
- Buddhist Economics and the Asoke Buddhist Community [271] – Suwida Sangsehanat
Do Editor
Convite para se Juntar ao Mundo dos Estudos Budista
“O Chulalongkorn Journal of Buddhist Studies é um humilde periódico dedicado principalmente a publicar artigos sobre o estudo acadêmico do Budismo. Como nós entendemos, pode haver vários entendimentos em relação ao termo ‘estudos Budistas’. No entanto, o nosso entendimento dessa palavra parece seguir o que foi dito pelo próprio Buda. O Budismo nos ensina a explorar o que deve ser considerado como os valores da vida. Normalmente, a visão Budista sobre o valor da vida está intimamente relacionada a uma coisa chamada ‘verdade’. Nós pensamos que o objetivo básico do estudo do Budismo é a verdade, ou um caminhar perto da verdade. A verdade, em nossa visão, é alguma coisa que é capaz de nos dar pelo menos duas coisas, a saber, sabedoria e felicidade. Portanto, embora esse periódico seja acadêmico, nós esperamos que o que for encontrado nele possa promover a verdade, como dito acima.
A internet tem o potencial de nos fazer superar algumas limitações dadas a nós por condições naturais e não naturais. No passado, publicar um livro ou algum tipo de escrito nunca poderia ser independente da comercialidade. Exatamente, o propósito básico da publicação de livros é unir duas pessoas: o escritor e o leitor. Isso não é diferente do propósito de produzir quaisquer bens em que duas pessoas, a saber, a pessoa que produz e a pessoa que consome, estão interligadas. A internet nos dá uma chance para o leitor e o escritor se encontrarem sem a terceira pessoa que no passado tinha o papel principal em decidir se, nesse caso, ela permitiria ou não que essas duas pessoas se encontrassem. O periódico online é barato e é capaz de ser livre da influência da comercialidade. Em textos Budistas, às vezes uma parábola das velas é dada pelo Buda para ilustrar como o Budismo concebe uma coisa chamada caridade. Como nós sabemos, um dos grandes ensinamentos do Budismo é um ensinamento sobre doação. Nós sabemos disso por meio de uma palavra Páli ‘dāna’. A doação na perspectiva Budista é feita para fornecer pelo menos duas coisas para o doador: felicidade e sabedoria. Quando nós damos; isso é como acender uma vela no escuro. Quando os nossos amigos vêm à nossa casa e pedem permissão para acender as velas deles com a nossa vela; isso é um grande prazer para nós em permitir que os nossos amigos obtenham o que eles necessitam. Quando nós decidimos lançar esse periódico, a imagem das velas ditas acima apareceu em nossa mente.
Todos os escritos nesse periódico são totalmente doados gratuitamente para o leitor. Como nós pensamos que ninguém no mundo é capaz de ser visto como o doador ou o tomador sozinho, o que nós temos feito em nome do editor e do escritor e outra pessoa relacionada é visto por nós como um tipo de ação feita por amigo para o amigo. Mesmo para o leitor que sente que ele prefere ler a escrever, apenas ler é o suficiente para nos fazer sentir que nós temos alguma coisa dada por nosso leitor. Méritos nos ensinamentos Budistas são realizados sob esse entendimento da amizade entre homem e homem e entre homem e outros seres sencientes. Chegando a esse ponto, o editor gostaria de aproveitar essa oportunidade para convidar os estudiosos do Budismo a partir de qualquer parte do mundo para se juntarem ao periódico. Há algumas informações primárias sobre o periódico a serem declaradas como segue. Primeiramente, como nós sentimos que o nosso periódico deve ser amigável e natural, a maneira do periódico é projetada para servir a esse propósito tanto quanto possível. Em qualquer periódico em Inglês, nós pensamos que um dos muitos padrões exigidos é o idioma. Parece que para atender a esse requisito, o nosso periódico deve ter o editor de idioma responsável por esse assunto. No entanto, nós decidimos evitar o uso do editor de idioma pela principal razão de que nós queremos que o nosso periódico seja natural. O Inglês agora é usado por um grande número de pessoas no mundo que não usam o Inglês como primeira língua. Até mesmo o editor desse periódico é aquele que tem aprendido Inglês como segunda língua e não usa o Inglês na vida diária. Se nós aceitamos a verdade de que para amigos as ações erradas não são importantes, nós esperamos que os nossos amigos que usam o Inglês como língua nativa tenham paciência para ver o Inglês em outros estilos, mesmo no estilo errado de acordo com os seus padrões.
Para aqueles que desejam se juntar a nós, por favor enviem os artigos ou quaisquer formas de escritos acadêmicos sobre o Budismo para o editor por meio do endereço de e-mail fornecido. Nós temos vários estudiosos Budistas para ler os manuscritos antes da publicação. No entanto, o processo de revisão por pares é feito sob entendimentos amigáveis, como dito anteriormente. Nós não esperamos uma coisa normalmente chamada de padrões acadêmicos se essa coisa significa ‘o que você deve fazer é como escrever uma tese para um mestrado ou doutorado’. O que nós esperamos é que o artigo tenha algum ponto para fazer o leitor entender melhor o Budismo. Nós temos tentado o máximo possível fazer o formato do periódico artístico e bonito. Todos os artigos publicados são formatados em formato PDF e organizados de forma que o leitor seja capaz de imprimi-los pessoalmente e ter um belo volume. No futuro, nós esperamos que o número de volumes aumente; e por essa razão nós temos projetado todas as coisas para fazer o periódico, quando impresso para uso pessoal, formar um conjunto de livros com design artístico e bonito. Além do periódico, outra coisa que nós temos concebido em nossa mente é se for possível publicar e-books sobre o estudo acadêmico do Budismo, nós faremos isso. E certamente, espera-se que esses e-books sejam de distribuição gratuita, assim como o periódico.
Nós fazemos o nosso trabalho de coração.
Somparn Promta
Centro de Estudos Budistas e Departamento de Filosofia
Chulalongkorn Unibersity Bangkok, Thailand.”
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UM CONCEITO DE DIREITOS NO BUDISMO
Por Somparn Promta
Há vários estudiosos que pensam que o Budismo não fornece ensinamentos sobre o tema dos direitos como conhecido na filosofia Ocidental. A justificativa para essa conclusão é que o sistema Budista de moralidade pode ser visto como baseado no indivíduo como agente (moralidade baseada no agente). Ele não é um sistema de moralidade baseado em demandas por direitos (moralidade baseada em direitos). Uma moralidade baseada em direitos utiliza o conceito de direitos como um indicador para julgar uma ação como certa ou errada. Por exemplo, o Sr. Black rouba dinheiro do Sr. Red. A ação do Sr. Black é errada porque viola os direitos de propriedade do Sr. Red. Uma moralidade baseada em agentes utiliza o conceito de valor individual como um indicador para julgar uma ação como boa ou má. Se uma ação aumenta o valor humano de seu agente, é uma boa ação e se ela diminui o valor humano dessa pessoa, ela é uma má ação. No exemplo acima, de acordo com a moralidade baseada no agente, a ação do Sr. Black é errada não porque infringe os direitos de propriedade do Sr. Red, mas porque ela diminui o valor pessoal do Sr. Black.
Estudiosos que acreditam que o Budismo não possui ensinamentos sobre direitos sustentam que, quando o Budismo considera uma determinada ação imoral, isso significa que a ação diminui o nosso valor pessoal e, ao considerar uma determinada ação boa, isso significa que a ação aumenta o nosso valor pessoal. Assim, pode-se dizer que o sistema Budista de moralidade é baseado na teoria do agente, não baseado na teoria do direito.
Todas essas visões surgem da falha em discernir que o sistema Budista de moralidade, na verdade, contém dois sistemas sobrepostos. Antes de abordar os vários problemas, eu gostaria de começar dividindo o sistema Budista de moralidade em dois sistemas diferentes. Uma vez tenha sido esclarecido esse ponto, o caminho para a criação de uma filosofia social Budista ficará mais claro e, no processo, nós descobriremos se é correto afirmar que o Budismo não possui ensinamentos sobre direitos.
Os dois sistemas de moralidade no Budismo
O Budismo analisa o ser humano sob duas perspectivas. Primeiramente, os seres humanos são indivíduos. Nesse sentido, o Budismo acredita que os seres humanos estão sob o controle de leis naturais conhecidas como niyāma.[1] Dos cinco niyāma descritos nos ensinamentos Budistas, um está diretamente relacionado à nossa discussão sobre moralidade: kammaniyāma, a lei de kamma. A lei de kamma é o aspecto da lei natural que rege as ações humanas que possuem algum valor ético ou moral. É a lei que determina os resultados que certas ações produzirão. Por exemplo, um dia, a caminho de casa, o Sr. Green ajuda a salvar uma criança que estava se afogando. A ação dele, nesse caso, é aquela que envolve um valor moral. Kammaniyāma, ou a lei de kamma, determina que a ação dele é uma boa ação. Quando a ação, no devido tempo, produz um resultado, com o amadurecimento da ação, esse será um resultado bom para o Sr. Green.
[1] Saṅyutta Nikāya, Nidānavagga. Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 16/61; Dīgha Nikāya Aṭṭhakathā, vol. 2, pp. 26-27. (Existem duas versões de Pāli Tipiṭaka na Tailândia: o Syāmraṭṭha Pāli Tipiṭaka e o Mahāchulālongkorn Pāli Tipiṭaka. Aquela usada pelo autor nesse artigo é o Syāmraṭṭha Pāli Tipiṭaka e os seus comentários – Editor.)
Assim, kammaniyāma é a lei natural que rege todos os indivíduos no que diz respeito às suas ações (kamma). O que quer que uma pessoa faça, não importa quando ou onde, se a ação implicar algum valor moral (ações que envolvem algum valor moral são ações que podem ser consideradas ou boas ou más; ações que não podem ser determinadas como boas ou ações envolvendo valor moral), a lei do kamma ‘registrará’ essas ações e dará origem a vipāka (resultado) no momento apropriado. Esse sistema de efetuar resultados é um tipo de processo natural de causa e resultado. O Budismo sustenta que esse processo funciona da mesma forma que outros tipos de processos de causa e resultado na natureza, como a causa e o resultado físicos (utuniyāma).
Quando nós fumamos um cigarro, nós recebemos alguma repercussão (consequência negativa) a partir do cigarro. Essa é uma lei natural. O processo de fruição do kamma é uma lei natural, assim como a lei natural que rege o ato de fumar cigarros (utuniyāma). A natureza possui os seus próprios sistemas de decisão e a fruição das ações em seus resultados é um desses sistemas. Ao disseminar o Dhamma, o Buda transmitiu ensinamentos sobre a lei de kamma. Em termos de ensinamentos, a lei de kamma é um assunto vasto, mas a sua essência pode ser resumida na seguinte passagem:
Qualquer semente que uma pessoa plante,
Esse é o fruto que ela recebe.
Quem faz o bem recebe um bom resultado,
Quem faz o mal recebe um resultado ruim.[2]
[2] Saṅyutta Nikāya, Sagāthavagga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 15/903.
Essencialmente, o Budismo ensina que todas as pessoas têm o status de indivíduos. Como um indivíduo, cada pessoa é obrigada a assumir a responsabilidade pelas próprias ações dele ou dela. Todas as pessoas conduzem as vidas delas sob o controle e a supervisão da lei de kamma. Assim, independentemente do que alguém faça e onde quer que elas o façam, se essa ação implicar um valor moral, a lei de kamma inevitavelmente ‘registrará’ essa ação e, no momento apropriado, produzirá um efeito resultante apropriado, de acordo com a qualidade da ação. Se a ação é boa, isso produzirá um resultado favorável. Se a ação é ruim, isso produzirá um resultado prejudicial. Dentro do bem e do mal, há, novamente, diferentes níveis de intensidade dos efeitos resultantes, dependendo da natureza das ações que os levaram.
Eu gostaria de me referir a esse sistema Budista de moralidade para prática individual como ‘moralidade individual’. Observe que a moralidade individual é baseada na lei de kamma e, uma vez que a lei de kamma, como outras leis naturais, é absoluta e imutável, não conhecendo relaxamento ou compromisso, esse sistema moral é caracterizado pela fixidez: errado é errado e certo é certo, não há exceções.
[3] Dīgha Nikāya, Pāṭikavagga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 11/198-204.
O Budismo não apenas considera os seres humanos sob a perspectiva de indivíduos, mas também sob uma segunda perspectiva, como componentes da sociedade. Nesse sentido, os seres humanos não são indivíduos separados, mas membros de comunidades. O Buda apresentou uma série de ensinamentos como diretrizes que podem ser usados como um ‘manual’ para a vida em comunidade e entre esses, o mais conhecido entre os estudantes do Budismo é o ensinamento sobre as seis direções.[3]
[3] Dīgha Nikāya, Pāṭikavagga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 11/198-204.
Esse ensinamento sustenta essencialmente que todos os indivíduos, ao viverem em sociedade, têm que se relacionar com seis grupos de pessoas, os quais o Buda comparou às seis direções, da seguinte forma:
1. Pais, incluindo avós e parentes mais velhos, são comparados à direção para a frente.
2. Professores e mentores são comparados à direção para a direita.
3. Esposa e filhos são comparados à direção para trás.
4. Amigos e associados são comparados à direção para a esquerda.
5. Servos, empregados ou subordinados são comparados [à direção(?)] para o [ponto(?)] nadir.
6. Homens religiosos ou monásticos da religião que alguém defende são comparados [à direção(?)] para o [ponto(?)] zenith.
[Observação PO: Nadir é uma palavra de origem árabe que significa “ponto mais baixo” ou “ponto mais profundo”. É um termo utilizado em diversas áreas do conhecimento, como geografia, astronomia, psicologia e até mesmo na linguagem cotidiana. Fonte: pesquisa internet]
[Observação PO: Zenith é uma palavra que tem origem na astronomia. Refere-se ao ponto mais alto no céu que um corpo celeste pode alcançar em relação ao observador. Na filosofia, o termo também é usado para indicar o estado máximo de realização ou perfeição.]
[Observação PO: As palavras páli que denotam as seis direções têm implicações simbólicas óbvias em relação aos seis grupos de pessoas que o Buda associa a elas. Puratthima (“leste”) deriva da palavra sânscrita purastaat, que, além de denotar o leste, significa “diante, à frente, em ou da frente;… no início” (Monier Monier-Williams, Carl Cappeller e Ernst Leumann, A Sanskrit-English Dictionary: Etymologically and Philologically Arranged with Special Reference to Cognate Indo-European Languages, Nova ed. (Delhi: Motilal Banarsidass, 2002), 634.). Os pais são representados no leste, pois são o nosso início. Dakkhi.na, o sul, também significa “a direita (em oposição à esquerda)” (T. W. Rhys Davids e Wilhelm Stede, The Pali Text Society’s Pali-English Dictionary (Oxford: Pali Text Society, 1999), 311). O lado direito, considerado respeitoso, representa apropriadamente os professores. À medida que o sol se põe no oeste, pacchima simboliza o fim da vida, onde se encontram o cônjuge e a família. Embora a palavra páli he.t.thima, que denota a direção inferior, não ofereça grande contexto simbólico, um equivalente sânscrito, dhruva, no Atharva-Veda (AV) III.26, 27, oferece. Como seis direções são mencionadas em apenas três textos sânscritos, essas referências são importantes. O adjetivo dhruva, quando usado com di”s, como aqui, significa “o ponto dos céus diretamente sob os pés” (Monier-Williams, Cappeller e Leumann, A Sanskrit-English Dictionary, 521). Como servos e escravos representam a direção sob os pés no Si”ngalovada-Suttanta, uma imagem clara de inferioridade social emerge com as classes baixas sendo literalmente pisoteadas. Uparima, a direção mais elevada, representa os brâmanes e ascetas, que podem ser vistos como estando mais próximos do céu e espiritualmente mais elevados do que os leigos. Fonte: DN 31 Sigalovada Sutta: The Buddha’s Advice to Sigalaka translated from the Pali by John Kelly, Sue Sawyer, and Victoria Yareham]
Em termos simples, os seres humanos têm que ter pais, avós e parentes mais velhos; eles têm professores, eles têm filhos e esposas ou maridos; eles têm amigos; eles têm subordinados ou superiores; e, por fim, há pessoas monges ou religiosos a quem eles reverenciam. As pessoas não vivem sozinhas. Mesmo que algumas pessoas não tenham todas as seis direções de relacionamento, elas têm que ter pelo menos algumas delas e, como tal, elas não são ilhas em si mesmas. Todas as seis direções descritas pelo Buda podem ser vistas como representativas dos relacionamentos entre duas pessoas e entre essas duas pessoas ele ensinou o código de conduta adequado para cada uma à outra, como segue:
1. Na direção para a frente [leste, Oriente], pais e filhos (incluindo avós ou parentes mais velhos e os filhos da família), cada lado tem um código de conduta apropriado, como segue:
a. Os deveres dos filhos para com os pais:
1. Tendo sido criados por eles, sustentá-los em troca.
2. Ajudá-los no trabalho deles.
3. Dar continuidade à linhagem familiar.
4. Comportar-se como convém a um herdeiro da família.
5. Praticar atos virtuosos que levam a resultados cármicos positivos (acts of merit in Buddhism) e dedicar os atos virtuosos em nome deles após o falecimento dos pais.
b. Os deveres dos pais para com os filhos:
1. Protegê-los do mal.
2. Ensiná-los e estabelecê-los no bem.
3. Proporcioná-los educação.
4. Arranjar-lhes cônjuges adequados.
5. Legá-los a herança no momento oportuno.
2. Na direção para a direita [sul], professores e estudantes têm os seguintes deveres mútuos:
a. Os deveres de um estudante para com o professor:
1. Levantar-se para cumprimentá-lo.
2. Aproximar-se dele para servi-lo e receber conselhos.
3. Dedicar-se ao aprendizado.
4. Estar a serviço do professor.
5. Aprender com respeito.
b. Os deveres de um professor para com um estudante:
1. Treiná-lo para ser uma boa pessoa.
2. Ensiná-lo para que ele entenda claramente.
3. Ensinar-lhe todo o conhecimento que se possui.
4. Elogiá-lo abertamente.
5. Proporcioná-lo proteção para quando ele tiver que sair para o mundo (preparando o estudante para que ele possa se virar sozinho no mundo).
3. Na direção para trás [oeste, Oriente], marido e esposa, cada lado tem deveres apropriados para com o outro, como segue:
a. Os deveres de um marido para com a esposa:
1. Mostre respeito por ela, devido à sua posição designada.
2. Não a desprezar.
3. Não cometer adultério.
4. Dar-lhe a autoridade da casa.
5. Oferecer-lhe joias de presente ocasionalmente.
b. Deveres de uma esposa para com o marido:
1. Zelar pela ordem da casa.
2. Prestar assistência aos parentes de ambos os lados da família.
3. Não cometer adultério.
4. Proteger a riqueza que o marido dela acumula.
5. Ser sempre diligente em seus deveres.
4. Na direção para a esquerda [norte], entre amigos e amigos, cada lado tem os seguintes deveres para com o outro:
a. Os nossos deveres para com os nossos amigos:
1. Ser gentil com eles.
2. Falar educadamente com eles.
3. Conduzir-nos de uma maneira que seja benéfica para eles.
4. Permanecer com eles nos momentos bons e ruins.
5. Ser fiel a eles.
b. Deveres dos nossos amigos para conosco:
1. Proteger-nos quando nós formos descuidados.
2. Proteger a nossa riqueza quando nós formos descuidados.
3. Ser um refúgio para nós quando nós estivermos em perigo.
4. Não nos abandonar quando nós estivermos em apuros.
5. Respeitar os nossos parentes.
5. No [ponto] nadir [abaixo], empregadores e empregados (ou superiores e subordinados), cada lado tem deveres apropriados para com o outro, como segue:
a. Os deveres de um empregador para com os seus empregados:
1. Dar-lhes trabalho compatível com as forças e habilidades deles.
2. Conceder-lhes alimentação e salários adequados.
3. Cuidar deles quando eles estiverem doentes.
4. Compartilhar com eles quaisquer ganhos especiais que advenham.
5. Conceder-lhes férias de tempos em tempos.
b. Deveres de um empregado para com o empregador:
1. Levantar-se para começar a trabalhar antes dele [empregador].
2. Parar de trabalhar depois dele [empregador].
3. Aceitar apenas o que lhe for dado pelo empregador.
4. Executar bem o trabalho designado pelo empregador.
5. Divulgar uma boa reputação do seu empregador quando surgir a oportunidade.
6. Quanto ao [ponto] zenith [acima], os monásticos e as pessoas leigas, cada lado tem os seguintes deveres para com o outro:
a. Os deveres de um leigo para com os monges:
1. Praticar quaisquer ações que afetem os monges com boa vontade.
2. Dizer quaisquer palavras que afetem os monges com boa vontade.
3. Pensar quaisquer pensamentos que afetem os monges com boa vontade.
4. Sempre abrir a porta para recebê-los.
5. Prover-lhes os quatro apoios (alimentação, vestimenta, abrigo e medicamentos).
b. Os deveres de um monge para com um leigo:
1. Protegê-los do mal.
2. Ensiná-los e estabelecê-los no bem.
3. Auxiliá-los com uma mente benevolente.
4. Ensinar-lhes coisas que eles nunca ouviram antes.
5. Explicar coisas que eles já ouviram.
6. Ensinar-lhes o caminho para o céu.[4]
[4] Para uma explicação detalhada ponto a ponto do ensinamento sobre as seis direções, veja o Comentário ao Dīgha Nikāya, vol. 3, pp. 144-151.
O leitor pode ter notado que o ensinamento sobre as seis direções é essencialmente uma descrição das obrigações morais a serem cumpridas pelas pessoas em uma sociedade, umas com as outras. Vivendo em uma sociedade complexa, nós temos que conhecer e interagir com um grande número de pessoas, no entanto, quando nós analisamos os nossos relacionamentos, eles podem ser reduzidos aos seis pares descritos acima. Assim, o ensinamento sobre as seis direções descreve a totalidade das obrigações morais das pessoas em uma sociedade.
Se nós compilássemos o ensinamento sobre as seis direções e outros ensinamentos que tratam das obrigações morais das pessoas em um contexto social em um sistema de moralidade, o resultado poderia ser chamado de ‘moralidade social’. Esse tipo de moralidade difere da moralidade individual já descrita por ser uma lei ou um esquema para supervisionar o comportamento social, diferentemente da moralidade individual, que serve como um esquema para supervisionar o comportamento individual.
A moralidade social também difere da moralidade individual por não se basear na lei natural de kammaniyāma. Ela se baseia, ao invés disso, em convenções sociais. Como não se baseia na lei natural, a moralidade social não é fixa e absoluta, mas sujeita a mudanças ou modificações de acordo com o tempo e o lugar. Tomando como exemplo o ensinamento sobre as seis direções, especificamente a seção que trata da relação entre empregador e empregado, os exemplos dados no Tipiṭaka baseiam-se na situação social da época. Hoje em dia, a sociedade é muito mais complexa e as relações entre empregadores e empregados são mais complexas e abstratas. Nós não podemos exigir que os trabalhadores se levantem para trabalhar antes de seus chefes ou parem de trabalhar depois deles. Tudo o que nós somos capazes de razoavelmente exigir na situação de emprego atual é que os trabalhadores trabalhem com eficiência e usem o tempo de trabalho deles para realmente trabalhar.
Assim, o ensinamento do Buda sobre as seis direções é muito amplo, adequado para uso e adaptação até mesmo por gerações posteriores de Budistas em sociedades diferentes daquela da Índia do Buda. O fato de o Buda ter transmitido os ensinamentos de uma forma que pudesse ser flexibilizada e adaptada, abrindo caminho para interpretação ou adaptação às condições sociais em mudança, indica que a moralidade social surge a partir da nomeação coletiva dos membros de uma sociedade. Embora o Buda a tenha estabelecido inicialmente por sua própria autoridade, a sua intenção de que a moralidade social fosse vista como uma questão coletiva, na qual todas as pessoas contribuíssem com a sua inteligência para o estabelecimento de convenções apropriadas à ocasião, fica clara em suas declarações pouco antes do parinibbāna (falecimento final), nas quais ele permitiu que a saṅgha (Ordem monástica) modificasse no futuro quaisquer de seus regulamentos menores que parecessem estar em desacordo com as condições sociais prevalecentes.[5]
[5] Dīgha Nikāya, Mahāvagga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 10/141.
A relação entre os dois sistemas morais
A iluminação do Buda permitiu-lhe ver que a vida humana prossegue sob a direção das leis naturais. Entre essas leis naturais, existe uma chamada lei de kamma. Essa lei tem a função de atribuir resultados apropriados a cada uma das ações que as pessoas cometem. Não há ação humana que escape à supervisão dessa lei de kamma. Todos os atos de kamma serão ‘registrados’ para aguardar o momento de sua fruição, independentemente de serem praticados secretamente ou abertamente. Uma vez que o Buda viu a fruição de kamma, ele ensinou o seu funcionamento a outras pessoas. O Budismo considera o entendimento da lei de kamma um grande benefício, pois nos permite praticar em conformidade com essa lei. Aqueles que entendem a lei de kamma são capazes de se beneficiar dessa lei, assim como as pessoas que entendem as leis da nutrição são capazes de se beneficiar desse conhecimento escolhendo alimentos úteis e evitando alimentos prejudiciais.
A lei de kamma nos ensina que é responsabilidade de cada indivíduo supervisionar a sua própria vida. Uma vez que se saiba que a natureza tem o seu próprio padrão baseado em kamma, é responsabilidade de cada um escolher as ações que conduzem ao seu próprio benefício e felicidade. O sistema de moralidade que se baseia no entendimento da lei de kamma e na supervisão que as pessoas fazem de si mesmas dentro dessa lei é o que eu tenho referido de moralidade individual.
A lei de kamma nos ensina que é responsabilidade de cada indivíduo supervisionar a sua própria vida.
O Buda afirmou que essa lei natural que rege as circunstâncias humanas existe independentemente de um Buda surgir no mundo ou não.[6] Expandindo sobre isso, no que diz respeito à lei de kamma, independentemente de um Buda surgir para ensinar à humanidade que eles estão vivendo sob a supervisão da lei de kamma ou não, essa lei existe e silenciosamente e constantemente cumpre as suas funções. Pessoas nos tempos antigos que não conheciam os ensinamentos do Buda (porque o Budismo ainda não havia surgido) eram inevitavelmente afetadas pela lei de kamma, mas elas não a conheciam. Nós podemos chamar essa moralidade da lei de kamma de um sistema moral não escrito. Ele não é escrito no sentido de que é uma lei puramente abstrata, ‘flutuando’, por assim dizer, na natureza, no vento, na luz do sol, nas florestas e montanhas e nas comunidades. Sempre que alguém comete um ato de kamma, essa lei moral abstrata tem um sistema claro e imparcial para distribuir resultados apropriados à ação dessa pessoa. Esse sistema é um invisível sistema; ele não pode ser experienciado pelos sentidos.[7]
[6] Saṅyutta Nikāya, Nidānavagga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 16/61.
[7] Dhammapada, Khuddaka Nikāya, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 25/11.
O sistema de moralidade que se baseia no entendimento da lei de kamma e na supervisão que as pessoas fazem de si mesmas dentro dessa lei é o que eu tenho referido de moralidade individual.
Assim que o Buda começou a difundir os ensinamentos e as pessoas começaram a buscar a ordenação, a Ordem monástica (saṅgha) surgiu. A princípio, a comunidade monástica era pequena e não surgiram problemas, entretanto, à medida que a comunidade crescia, os problemas começaram a surgir. Havia, por exemplo, o problema da qualidade dos membros individuais de saṅgha. A princípio, o Buda selecionava pessoalmente aqueles que seriam ordenados monges, no entanto, à medida que a comunidade crescia e mais e mais pessoas expressavam o desejo de ingressar na Ordem, não era mais possível para o Buda selecionar pessoalmente cada candidato para admissão, então ele permitiu que um quórum de membros da Ordem ordenasse os candidatos. Isso abriu caminho para que pessoas de qualidade inferior fossem admitidas na Ordem e, uma vez admitidas, os problemas começaram a surgir.
Sempre que alguém comete um ato de kamma, essa lei moral abstrata tem um sistema claro e imparcial para distribuir resultados apropriados à ação dessa pessoa. Esse sistema é um invisível sistema; ele não pode ser experienciado pelos sentidos.
É relatado no Vinaya Piṭaka[8] que havia um monge que odiava corvos. Antes dele vir a ser monge, ele tinha sido um arqueiro. Ao redor do mosteiro onde se encontrava, havia muitos corvos e, usando arco e flecha, ele atirava e matava muitos deles. Ele cortava as cabeças dos corvos que havia abatido e as empalava em estacas que circundavam a sua cabana. As pessoas relataram o caso ao Buda. Após investigar e apurar a verdade do caso, o Buda declarou o regulamento vinaya proibindo os monges de matar seres vivos, impondo uma ofensa pācittiya para quem o fizesse.
[8] Vinaya Piṭaka, Mahāvibhaṅga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 2/631.
Note que essa regra de vinaya é como todas as outras regras de vinaya para bhikkhus, (das quais o Buda estabeleceu, uma a uma conforme a ocasião apropriada surgia, um total de 227 durante o seu tempo; ou seja, é uma lei escrita (por ‘escrita’ aqui também incluo a palavra falada). O que é de particular importância para o leitor em relação a essas regras de vinaya é que o Buda estava bem ciente de que todos os indivíduos já estão sujeitos e supervisionados pela lei de kamma. O monge atirador de corvos não foi exceção: a matança dele de corvos foi um mau kamma (pāpa) e esse mau kamma foi instantaneamente registrado pela lei de kamma. Esse monge inevitavelmente teria que pagar o castigo cármico por esse ato em algum momento no futuro. A natureza já tem a sua própria maneira perfeita de punir os malfeitores, mas isso é uma questão diferente do estabelecimento das regras de vinaya. Esse monge possuía dois tipos de status: o primeiro como um ser humano individual, o segundo como um membro da comunidade monástica. A partir da perspectiva do primeiro status, a lei de kamma já se encarregava das ações daquele monge, mas, da perspectiva de seu segundo estado, cabia à comunidade monástica lidar com isso, visto que as ações daquele monge também afetavam a comunidade. O Buda, usando a sua autoridade como chefe da Ordem, estabeleceu a regra que proibia os monges de matar seres vivos. Essa lei foi estabelecida em nome da comunidade monástica para servir como padrão de punição, além da punição já esperada da lei natural de kamma.
Resumindo até aqui, embora para todos os seres humanos exista a lei de kamma, que distribui recompensas e penalidades por suas ações, como as pessoas também são membros de comunidades, elas também devem assumir a responsabilidade por quaisquer ações que afetem a comunidade. Quando nós analisamos o caso do monge relatado acima, nós descobrimos que: (1) Ele detinha o status de ser humano individual cujo comportamento era supervisionado pela lei de kamma. A sua matança de corvos foi um ato individual de kamma e esse kamma certamente traria resultados em algum momento futuro. (2) Além de sua condição individual, ele detinha o status de membro da comunidade monástica. Nesse último sentido, a matança de corvos dele também teve um efeito sobre a comunidade monástica, pois era uma ação que os leigos criticavam. Antes de estabelecer a regra, o Buda censurou as ações do monge como ‘não para incutir fé naqueles que ainda não a possuíam, ou para aumentar a fé naqueles que já a possuíam.’ Assim, pode-se ver que a principal consideração no estabelecimento de vinaya pelo Buda era social e essa justificativa é capaz de ser vista em ação na seguinte declaração:
Por essa razão, monges, eu estabeleço as regras de treinamento para monges com os seguintes dez objetivos: 1. para a virtude da Ordem; 2. para o bem-estar da Ordem; 3. para a contenção dos desavergonhados; 4. para o conforto dos monges de moralidade pura; 5. para a prevenção do mal que surge no presente; 6. para a destruição de qualquer mal que surgirá no futuro; 7. para o surgimento da fé naqueles que ainda não têm fé; 8. para o aumento da fé naqueles que têm fé; 9. para o firme estabelecimento do verdadeiro ensinamento; e 10. para servir como um modelo para caminhos finos e graciosos.[9]
[9] Vinaya Piṭaka, Mahāvibhaṅga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 1/20. Para uma explicação sobre o benefício de estabelecer cada uma das regras de vinaya, veja o Vinaya Aṭṭhakathā vol. 1, pp. 262-265.
O vinaya é um código de moralidade para a Ordem. Nós podemos chamar esse código de moralidade de um sistema moral escrito. Em geral, qualquer ação considerada má pela lei de kamma também será percebida como má pelos seres humanos. Em outras palavras, certos tipos de ações são erradas tanto da perspectiva da moralidade individual quanto da perspectiva da moralidade social.
Seja como for, alguns tipos de ações, embora não sejam efetivamente determinadas como más por kammaniyāma, têm um efeito sobre a comunidade monástica e para essas o Buda estabeleceu regras de vinaya, impondo penalidades àqueles que as violam. Um exemplo disso é a regra de vinaya que proíbe comer após o meio-dia.[10] Os membros da Ordem devem preservar um decoro que inspire fé. Entregar-se a hábitos alimentares desleixados e comer de forma lúdica não é errado segundo a lei de kamma e um monge que come desleixadamente não pode ser considerado errado do ponto de vista da moralidade individual, mas é errado do ponto de vista da moralidade social.
[10] Vinaya Piṭaka, Mahāvibhaṅga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 2/850.
A necessidade da moralidade social
Após a leitura do texto acima, o leitor poderá começar a perceber que, embora todos os seres humanos já estejam sob o controle e a supervisão da lei de kamma, que pode ser chamada de sistema moral que supervisiona todas as ações individuais, esse sistema de moralidade não é suficiente. A sua insuficiência pode ser ilustrada de forma simples com o seguinte exemplo: o Sr. Green é uma pessoa individual. Ele não acredita na lei de kamma. Devido à descrença dele, ele sente prazer na ocupação de ser ladrão. As ações do Sr. Green têm um efeito destrutivo na comunidade. A partir da perspectiva da moralidade individual, o Sr. Green certamente tem que pagar por suas ações em algum momento no futuro, independentemente de acreditar ou não na lei de kamma. Um dia, as pessoas que têm sido adversamente afetadas pelas ações do Sr. Green se reúnem no salão de reuniões local para determinar um curso de ação para aliviar o problema.
O Sr. Mee propõe o estabelecimento de uma lei para punir ladrões e explica os benefícios esperados de tal lei. Outro homem se levanta e diz: ‘Não é necessário ter leis, porque a natureza tem os seus próprios padrões para punir aqueles que cometem erros. Deixem esse ladrão ir e deixem que a lei de kamma o resolva. Nós não precisamos perder tempo com ele.’ Embora a atitude daquele homem esteja de acordo com a percepção Budista, ela não é correta, pois considera apenas um lado, a perspectiva da moralidade individual. Como já foi dito, quando nós ingressamos em uma sociedade, nós possuímos dois tipos de status. O primeiro é como indivíduos humanos, o segundo é como membros da comunidade. Como nós temos esses dois tipos de status, a responsabilidade que nós temos também tem que ser de dois tipos: responsabilidade pessoal e responsabilidade social.
Quando o Sr. Green rouba os pertences de outras pessoas, ele tem dois níveis de responsabilidade: o primeiro é a responsabilidade pessoal, o segundo é a responsabilidade para com a comunidade. A primeira responsabilidade é assumida pela lei de kamma, entretanto, para o segundo nível de responsabilidade, as pessoas da comunidade têm que criar o seu próprio sistema para garanti-la. Ao sugerir que a comunidade estabeleça uma lei para lidar com o Sr. Green, o Sr. Mee está sugerindo algum tipo de sistema para garantir a responsabilidade social que o Sr. Green tem que ter.
…quando nós ingressamos em uma sociedade, nós possuímos dois tipos de status. O primeiro é como indivíduos humanos, o segundo é como membros da comunidade. Como nós temos esses dois tipos de status, a responsabilidade que nós temos também tem que ser de dois tipos: responsabilidade pessoal e responsabilidade social.
Responsabilidade é um conceito moral. Quando o Sr. Green rouba dinheiro, o Budismo explica que:
(a) A partir da perspectiva do indivíduo, a ação é errada porque surge das raízes prejudiciais da ação. Simplificando, a ação do Sr. Green é imoral porque brota a partir dos maus impulsos naturais dentro dele, que são a ganância, o ódio e a delusão. De acordo com a lei de kamma, ações decorrentes de raízes prejudiciais têm que resultar inevitavelmente em sofrimento. A lei natural conhecida como kammaniyāma já contém em si o sistema pelo qual a justiça é mantida nesse caso. Kammaniyāma diz: você é capaz de roubar dinheiro se quiser, entretanto, uma vez que você tenha roubado, você tem que assumir a responsabilidade por isso pagando o castigo — indo para o inferno, por exemplo.
(b) A partir da perspectiva da sociedade, uma vez que roubar causa problemas para os outros e infringe os direitos deles de propriedade, a responsabilidade pessoal não é suficiente. Nesse sentido, o Budismo oferece bastante margem de manobra: se uma sociedade deseja estabelecer um sistema para exigir responsabilidade social por certas ações que perturbam o bem-estar da comunidade, é dever e responsabilidade dessa sociedade determinar esse código por si mesma. Para esse fim, o Budismo sugere uma série de princípios morais (a serem detalhados posteriormente) que podem ser usados como diretrizes na concepção desse sistema. Esses princípios funcionam como alicerces a partir dos quais as pessoas dentro de uma comunidade podem derivar os detalhes.
Responsabilidade é um conceito moral.
Em sua época, o Buda não concebeu um sistema político para obter responsabilidade social (por qualquer que seja a razão), no entanto, em relação à comunidade monástica, que o Buda administrava, ele estabeleceu um sistema muito claro. O vinaya dos monges era o sistema do Buda para exigir a aceitação da responsabilidade social por parte dos monges. Quando um monge matava corvos, ele teria que aceitar a responsabilidade social além da responsabilidade pessoal à qual estava sujeito pela lei de kamma e isso deveria se dar na forma de uma ofensa (āpatti) imposta a ele.
Na minha opinião, o exemplo fornecido pelo Buda pode ser usado como paradigma para o estabelecimento de um sistema de responsabilidade social. Simplificando, se nós acreditamos que a sociedade Tailandesa é uma sociedade Budista e desejamos usar os princípios Budistas como base para determinar um sistema de exigência de responsabilidade social em nosso país, nós podemos usar as diretrizes e os métodos estabelecidos para a comunidade monástica como um exemplo e quando eu falo atualmente de um sistema de exigência de responsabilidade social de acordo com a perspectiva Budista, eu estarei usando as diretrizes que o Buda usou com a Ordem como o meu modelo.
Os cinco preceitos e a responsabilidade social
Os suttas relatam que, certa vez, o Buda estava viajando pela cidade de Veḷudvāra, uma vila no Reino de Kosala. Os aldeões vieram ver o Buda e lhe pediram um ensinamento que os ajudasse como membros da família envolvidos nas questões mundanas da sociedade mundana. Em resposta ao pedido dos aldeões de Veudvāra, o Buda deu o seguinte ensinamento, conhecido como os sete attūpanāyikadhamma:
‘Chefes de família, eu lhes ensinarei o attūpanāyikadhamma. Por favor, prestem atenção. Agora, chefes de família, o que são os attūpanāyikadhamma? Os attūpanāyikadhamma são os seguintes: Um nobre discípulo desse Ensinamento e Disciplina, chefes de família, considera assim: ‘Eu desejo ter vida, eu não desejo morrer; eu quero felicidade, eu abomino o sofrimento. Se alguém me matasse, eu que desejo ter vida, que não quero morrer, que quero felicidade e abomino o sofrimento, as ações dessa pessoa não me agradariam. E se eu matasse outra pessoa, alguém que quisesse viver, não quisesse morrer, que quisesse felicidade e abominasse o sofrimento, as minhas ações não seriam agradáveis a essa pessoa… Se alguém tomasse alguma coisa que eu não tivesse dado… cometesse adultério com a minha esposa… mentisse para mim… e me caluniasse… proferisse palavras duras para mim… proferisse linguagem frívola para mim, as ações dessa pessoa não me agradariam. E se eu tomasse algo que outra pessoa não tivesse dado… cometesse adultério com a sua esposa… mentisse para ele… e o caluniasse… proferisse palavras duras para ele… proferisse linguagem frívola para ele, as minhas ações não seriam agradáveis a essa pessoa.’ [11]
[11] Saṅyutta Nikāya, Mahāvāravagga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 19/1458-1465.
Os attūpanāyikadhamma do Buda são, na verdade, um indicador para determinar o que as pessoas em uma comunidade devem observar ou respeitar em relação umas às outras. Em essência, o princípio é alguém se perguntar como ele se sentiria se outra pessoa fizesse a mesma coisa com ele. O Buda mencionou sete ações — matar, roubar e cometer adultério (sendo essas três ações corporais) e mentir, caluniar, proferir palavras ásperas e proferir linguagem frívola (sendo essas quatro ações verbais) — instruindo os aldeões de Veḷudvāra a se perguntarem se ficariam satisfeitos se alguém fizesse essas sete coisas a eles. A resposta foi, naturalmente, que não. Quando os chefes de família responderam dessa forma, o Buda continuou dizendo que o mesmo se aplica a outras pessoas: se nós fizéssemos essas coisas a elas, elas também não ficariam satisfeitas. Nós podemos chamar esses attūpanāyikadhamma de ‘princípios para avaliar o certo e o errado com base na comparação dos sentimentos dos outros com os nossos’ (princípio da auto comparação). De acordo com esse princípio, qualquer ação que nós sentimos que nós não gostaríamos que os outros fizessem conosco é considerada uma transgressão.
Em nossas vidas, há muitas ações em relação às quais nós poderíamos nos perguntar como acima e chegar à conclusão de que são erradas, entretanto, dos exemplos dados pelo Buda aos habitantes da cidade de Veḷudvāra para reflexão e prática, havia apenas sete. Esses sete podem ser incluídos em todos, exceto o último, beber bebidas alcoólicas e intoxicantes, dos cinco preceitos. Tendo chegado a esse ponto, há uma outra conclusão que nós podemos tirar: os cinco preceitos não são apenas uma ética pessoal, como é bem conhecida, mas também uma ética social. Eles são ética social na medida em que, como pode ser visto no ensinamento sobre o attūpanāyikadhamma, a fonte dos cinco preceitos, o que o Buda usou como uma base para justificar a não violação dos cinco preceitos foi simplesmente a justificativa de que nós não temos o direito de fazê-lo.
Por que nós não temos o direito? Porque a vida que nós iremos tirar pertence a outra pessoa; a posse que nós iremos roubar pertence a outra pessoa; o parceiro com quem nós iremos cometer adultério pertence a outra pessoa; a pessoa para quem nós iremos mentir é aquela que se machuca, não nós. Como eles não são nós e não nos pertencem, nós não temos o direito de violá-los. Essa explicação indica que os cinco preceitos são, em parte, uma ética social. Como ética social, nós podemos explicar ainda que o Buda estabeleceu os cinco preceitos não apenas como uma ética pessoal para o indivíduo (ou seja, como princípios de prática para levar à transcendência individual do sofrimento), mas também como meios para exigir responsabilidade social. Nós não devemos matar animais, roubar, cometer adultério ou ferir pessoas com discurso falso, porque essas ações arrastarão as nossas próprias vidas (de acordo com a ética pessoal) e nós não temos o direito de fazê-lo (de acordo com a ética social). Se nós queremos saber quais ações nós não temos o direito de fazer, o ensinamento do Buda sobre o attūpanāyikadhamma pode ser usado como um indicador.
A moralidade pessoal baseia-se no conceito de agente; a moralidade social baseia-se no conceito de direitos
A partir de todo o exposto, pode ser concluído que:
a. O sistema Budista de moralidade pode ser dividido em dois sistemas: moralidade individual e moralidade social.
b. Um mesmo princípio pode ser considerado moralidade individual ou moralidade social. Isso ocorre porque a violação de alguns princípios não é apenas errada em termos de kammaniyāma, mas também em termos da sociedade e esse último tipo de transgressão, se analisado até as suas raízes, é capaz de ser considerado errado por ser uma violação dos direitos de outras pessoas. Alguns princípios podem ser interpretados apenas como moralidade individual e não como moralidade social, porque a violação de tais princípios é errada da perspectiva de kammaniyāma, mas não socialmente. Alguns princípios podem ser interpretados como moralidade puramente social e não podem ser interpretados como moralidade individual, porque a violação desses princípios é uma transgressão social, mas não é errada de acordo com kammaniyāma.
No início desse artigo, eu afirmei que há vários estudiosos que entendem a moral Budista como sendo estritamente a moral baseada em agentes, não a moral baseada em direitos. Tendo chegado a esse ponto, o leitor pode agora ver que essa visão não está correta. Falando corretamente, tem que ser dito que a moral Budista possui dois sistemas: o primeiro é a moral individual e o segundo é a moral social.
Direitos na visão Budista
Existem outros estudiosos que afirmam que o Budismo não lida com direitos por razões diferentes das do grupo anterior. Eles não baseiam as suas conclusões nos ensinamentos, mas na própria palavra. Eles sentem que a palavra ‘direitos’ é um conceito Ocidental que aparece na filosofia política e na sociedade Ocidental moderna. Nós não encontramos a palavra ‘direitos’ em textos Budistas porque o Budismo é um sistema de crenças antigo. Na minha opinião, a palavra não é o importante. A coisa importante é o significado.
Um sistema de pensamento pode nem sequer mencionar a palavra ‘direitos’ e ainda assim o conteúdo desse sistema de pensamento ensina alguma coisa que corresponde ao significado da palavra ‘direitos’ como entendida na filosofia Ocidental. Eu diria que tal sistema de pensamento lida com direitos. Dessa maneira, embora a palavra ‘direitos’ não apareça como tal nos ensinamentos do Buda, se nós somos capazes de demonstrar que os princípios ensinados pelo Buda lidam com algo que é essencialmente o mesmo em significado que o conceito de direitos na filosofia Ocidental, então nós somos capazes de afirmar enfaticamente que o Budismo fala de direitos.
Direitos naturais
A primeira coisa que nós consideraremos é a crença Budista em relação aos direitos naturais. No Ocidente, existem duas escolas de pensamento opostas sobre o assunto. Uma sustenta que existem direitos na natureza, enquanto a outra sustenta que os direitos naturais são simplesmente um conceito cunhado como justificativa para explicar direitos legais e que não existem ‘direitos naturais’ como tais. Para começar, eu gostaria de investigar como o Budismo se posiciona em relação a essas duas visões.
Alguns estudantes de Budismo pensam que, de acordo com o ensinamento Budista de anattā, os seres humanos não podem reivindicar a propriedade de absolutamente nada, nem mesmo dos cinco khandhas que ocupam. Sendo assim, os seres humanos não podem reivindicar quaisquer direitos na natureza. Essa visão surge a partir da falta de discernimento de que existem dois níveis de ensinamento no Budismo: um nível é aquele que lida com paramattha sacca (verdade suprema), o outro é aquele que lida com sammutti sacca (verdade relativa ou convencional).
É frequentemente entendido que, entre os ensinamentos do Buda, a parte que trata do paramattha sacca é mais verdadeira do que a que trata do sammutti sacca. Isso é um mal-entendido. Na verdade, ambos os níveis de verdade são igualmente verdadeiros, mas em sentidos diferentes. Sammutti sacca é a verdade que aparece através dos sentidos; paramattha sacca é a verdade que surge da análise de qualquer coisa até que a sua realidade última seja percebida. Por exemplo, suponha que agora você esteja sentado conversando com dois amigos. Vamos chamar o primeiro amigo de ‘Verde’ e o segundo de ‘Branco’. Verde é um Nortista, de pele clara e ele é um engenheiro. Branco é um Sulista, de pele escura e ele é um professor em uma universidade. Em termos de paramattha sacca, esses dois amigos, quando analisados até o nível mais fundamental, são simplesmente dois grupos [piles] consistindo de cinco agregados (khandha).
Sammutti sacca é a verdade que aparece através dos sentidos; paramattha sacca é a verdade que surge da análise de qualquer coisa até que a sua realidade última seja percebida.
No nível de paramattha, nenhum estado de ser ‘Verde’ ou ‘Branco’ é capaz de ser encontrado, existem apenas os fenômenos naturais puros que se uniram para formar essas duas pessoas, convencionalmente chamadas de ‘Verde’ e ‘Branco’. A partir da perspectiva de sammutti sacca, no entanto, essas duas pessoas têm as suas próprias identidades peculiares, distintas das outras pessoas. Verde é diferente de Branco e Branco é diferente de Verde. Essa é a individualidade peculiar de cada uma delas. Se alguém perguntasse se, na realidade, essas duas pessoas eram simplesmente compostos de cinco agregados ou eram pessoas individuais com as suas próprias características peculiares, como aparentam ser, o Budismo responderia que, da perspectiva de paramattha sacca, essas duas pessoas são simplesmente dois conjuntos de khandhas com a mesma natureza — sujeitos às três características de impermanência (anicca), estresse (dukkha) e não-eu (não-ser, não-self) (anattā) — porém, da perspectiva de sammutti sacca, essas duas pessoas são pessoas individuais, cada uma com as suas próprias características peculiares. Ambas as verdades são igualmente verdadeiras.
Os dois tipos de verdade estão relacionados aos dois níveis de moralidade explicados acima. Em outras palavras, o Budismo ensina esses dois níveis de verdade para se conformar aos dois sistemas de moralidade. Ao lidar com a moralidade individual, o Budismo nos ensina a olhar o mundo a partir da perspectiva de paramattha sacca, no entanto, quando se trata da moralidade social, nós não podemos olhar o mundo em termos de paramattha sacca; nós temos que olhá-lo de outra perspectiva, da perspectiva de sammutti sacca.
Vejamos um exemplo: suponha que nós estamos de luto pela morte de um querido amigo em um acidente. O princípio ético do Budismo para o nível individual diz: Por que você não olha para o seu amigo como se fosse real, como simplesmente os cinco khandhas surgindo e cessando? Ao olhar para a morte do nosso amigo como um mero fenômeno natural que acontece, não diferente de um castelo de areia derretendo no mar quando a maré sobe e as ondas o inundam, nós somos capazes de aliviar a nossa dor. Nesse caso, pode-se observar que paramattha sacca desempenha um papel fundamental e esse papel é muito apropriado.
Suponhamos que nós estamos em dificuldades econômicas e não somos capazes de pagar a televisão que nós temos comprado a prazo. Nós descobrimos que o nosso vizinho tende a deixar a porta de sua casa aberta enquanto toma banho e na casa nós somos capazes de ver onde ele guarda o seu dinheiro. Um dia, o nosso vizinho vai ao banheiro para tomar banho e deixa a porta aberta, então nós entramos sorrateiramente em casa e roubamos algum dinheiro, o suficiente para pagarmos confortavelmente a TV do mês. Como justificativa, nós explicamos as nossas ações a nós mesmos em termos de paramattha sacca: que o nosso vizinho é meramente uma composição dos cinco khandhas e que o dinheiro que ele pensa possuir é meramente rūpakhandha. De acordo com o princípio de anattā, ninguém pode reivindicar a propriedade de nada. Portanto, em última análise, esse dinheiro não pertence a ninguém. Que nós, que somos simplesmente uma composição dos cinco khandhas, tenhamos invadido e roubado uma pilha de rūpakhandha, que era dinheiro, que outra composição de cinco khandhas deludamente acreditava ser sua, não constitui de forma alguma uma violação dos princípios morais.
Esse tipo de explicação foi usado por algumas escolas filosóficas na Índia do Buda para confortar certos grupos de pessoas que tinham que viver vidas baseadas em ferir, saquear ou matar outros, como soldados ou bandidos. Essas filosofias começaram com uma visão de mundo em termos de paramattha sacca, assim como a filosofia Budista, entretanto, diferentemente do Budismo, elas acreditavam que apenas paramattha sacca é verdadeiro e sammutti sacca é falso,[12] enquanto o Budismo atribui igual validade a ambos os níveis de verdade. Assim, na visão Budista, o episódio descrito acima é um uso indevido de paramattha sacca. Aqui, nós estamos lidando com a moralidade social. Nós estamos roubando o dinheiro do nosso próximo, realizando uma ação que afetará negativamente os direitos de outra pessoa. Nós temos que explicar a situação em termos do segundo nível de princípios éticos, a moralidade social.
[12] Exemplos dessas filosofias podem ser vistos nas visões do filósofo conhecido como Pakudha Kaccāyana e nas visões que aparecem no Bhagavad Gīta. Veja Dīgha Nikāya, Sīlakhandhavagga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 9/97; Bhagavad Gīta 2. 16-72.
O fato de o Budismo abraçar igualmente ambos os níveis de verdade tem importantes implicações filosóficas: na visão Budista, a filosofia superior e a filosofia social têm o mesmo status. O Budismo não dá mais importância à visão de mundo que penetra na fonte ou no cerne das coisas do que à visão de mundo baseada no senso comum, nem dá mais importância a olhar o mundo com senso comum do que a olhar o mundo no nível último. Pelo contrário, o Budismo acredita que ambos os níveis de percepção do mundo são igualmente importantes. Os seres humanos vivem no mundo natural e no mundo das convenções: a verdade natural (paramattha sacca) e a verdade convencional (sammutti sacca) são igualmente significativas. Embora, em termos de paramattha sacca, o Budismo sustente que os seres humanos não têm o direito de reivindicar a propriedade de nada, passagens como a seguinte podem ser encontradas, indicando que, em termos de sammutti sacca, o Budismo admite que os seres humanos podem legitimamente reivindicar a propriedade de coisas:
Brâmane! O que é ārakkhasampadā? Brâmane, um filho de boa família, possui riqueza adquirida através de seu próprio trabalho, com o suor de seus próprios braços, conquistada com retidão. Ele organiza proteção para essa riqueza, pensando: ‘Como eu sou capaz de fazer com que reis não venham e tomem a minha riqueza, ladrões não a roubem, fogo não a destrua, inundações não a destrua e meus parentes malignos não a levem embora?’ Isso, Brâmane, é ārakkhasampadā (dotação de proteção).[13]
[13] Aṅguttara Nikāya, Aṭṭhakanipāta, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 23/145.
Os seres humanos vivem no mundo natural e no mundo das convenções: a verdade natural (paramattha sacca) e a verdade convencional (sammutti sacca) são igualmente significativas.
A passagem acima foi dirigida pelo Buda a um Brâmane. Ela aborda os princípios para manter uma vida feliz no momento presente, conhecidos como os quatro diṭṭhadhammikattha (condições para o bem-estar no momento presente), consistindo em uṭṭhānasampadā, diligência para ganhar a vida; ārakkhasampadā, saber proteger a riqueza adquirida; kalyāṇamittatā, saber associar-se a pessoas que possam servir de bons exemplos; e samajīvitā, usar a riqueza nem de forma excessiva nem mesquinha. O que é particularmente notável para o leitor na passagem acima é que o Buda reconhece que quando A honestamente e laboriosamente ganha a vida, a riqueza que advém de seus trabalhos é legitimamente dele (uṭṭhānaviriyādhigatā bāhābalaparicitā sedāvakkhittā dhammikā dhammaladdhā). A tem plenos direitos sobre essa riqueza. O fato de o Buda reconhecer que a posse de tal riqueza é justa tem duas implicações fundamentais: 1. A tem plenos direitos sobre a riqueza; 2. é dever de outras pessoas respeitar esses direitos. Quem se apropria indevidamente do dinheiro de A ou o defrauda é considerado no Budismo como tendo violado o preceito de roubar. Ele violou o preceito moral porque a ação dele não é justa e a ação não é justa porque viola os direitos de A.
Observe que os direitos de propriedade, de acordo com a declaração do Buda acima, dependem de um direito muito importante e fundamental, que é o direito ao próprio corpo. Em termos de sammutti sacca, o Budismo inicia a sua explicação dos eventos morais com referência ao indivíduo. O Budismo reconhece que cada pessoa é dona de seu corpo e de sua vida. Como donas, as pessoas têm plenos direitos de fazer o que quiserem com os seus corpos e as suas vidas. O Budismo considera matar outras pessoas uma violação dos preceitos contra matar, mas não o suicídio.[14] O Budismo mantém essa posição porque baseia o seu sistema de moralidade na suposição de que cada pessoa é dona de sua vida e, como proprietária, tem o direito de fazer o que quiser com os seus bens. Matar outras pessoas é imoral porque infringe o direito de outras pessoas à vida. Por outro lado, matar a si mesmo não infringe o direito de ninguém e, portanto, cometer suicídio não é uma violação do preceito contra matar (pāṇātipāta).
[14] Dhammasaṅgaṇī Aṭṭhakathā, p. 145; Vinayapiṭakaṭīkā, vol. 1, p. 278. Em relação ao suicídio, o leitor também deve ter em mente que nós estamos aqui discutindo-o em termos de moralidade social, não em termos de moralidade individual. Simplificando, nós estamos aqui investigando a questão de como o Budismo vê o suicídio da perspectiva social. A resposta é que não é errado porque não infringe os direitos de outras pessoas. Pessoas que cometem suicídio estão usando os direitos que têm sobre as suas próprias vidas. Quando elas não desejam mais viver, é seu direito pôr fim à própria vida. A partir da perspectiva social, a sua ação não pode ser criticada. No entanto, se considerado a partir da perspectiva da moralidade individual, o Budismo vê o suicídio como errado, uma vez que é uma ação que surge de uma das raízes mentais prejudiciais da ação, a delusão.
Direitos humanos
Nós podemos resumir o exposto acima dizendo que o Budismo inicia a sua visão sobre os direitos naturais no corpo e na vida do indivíduo. Todas as pessoas têm esses direitos igualmente, independentemente de sua situação de nascimento, sejam deformadas ou perfeitamente saudáveis, de nascimento nobre ou humilde, ricas ou pobres, homens ou mulheres, inteligentes ou estúpidas. As pessoas podem diferir nesses aspectos, no entanto, essas diferenças não são a essência de ser humano delas. O Budismo aceita que todas as pessoas têm o mesmo status como seres humanos. Ser humano, nesse aspecto, é definido pela presença de todos os cinco khandhas e dentro desses cinco khandhas existem os khandhas mentais vitais (nāmakhandha) da mente e os seus concomitantes. Essa parte dos khandhas se expressa no sentimento de amor-próprio e no desejo pelo que é bom.[15] Em termos simples, todas as pessoas, embora diferentes em suas características externas, são iguais no sentido de que aspiram à excelência e conduzem as suas vidas em direção a essa excelência. A partir dessa perspectiva, nós vemos que os seres humanos não têm o direito de usar os seus semelhantes como meios para atingir os seus próprios fins. A ética Budista nos ensina a nos relacionarmos com outras pessoas como semelhantes no nascimento, no envelhecimento, na doença e na morte. A essência dessa ética é reconhecer que todos os seres humanos se prezam e aspiram ao que é bom. Essa é a qualidade essencial do ser humano. Nós temos que honrar essa qualidade essencial e nos relacionarmos com os nossos semelhantes em conformidade com ela. O Budismo nos ensina a nos relacionarmos com os nossos semelhantes como seres com o mesmo valor e significado que nós mesmos (ou seja, como ‘fins’ ao invés de ‘meios’). Usar outras pessoas como meios para atingir objetivos egoístas é considerado imoral no Budismo. Por exemplo, o Sr. Green é o empregador do Sr. White. Ele paga ao Sr. White menos do que ele merece. Essa ação é imoral porque (1) o Sr. White é um ser humano tanto quanto o Sr. Green; (2) como ser humano, o Sr. White tem esperanças na vida, assim como o Sr. Green: assim como o Sr. Green deseja que a vida dele progrida, o Sr. White também deseja que a vida dele progrida; (3) suprimir o salário do Sr. White não é reconhecer o valor das aspirações do Sr. White por excelência na vida; (4) portanto, a ação do Sr. Green é imoral.
[15] Dhammapada, Khuddaka Nikāya, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 25/20.
A visão Budista sobre direitos humanos baseia-se em sua visão sobre direitos naturais; em outras palavras, direitos humanos são simplesmente direitos naturais. Segundo o Budismo, tanto os direitos humanos quanto os direitos naturais realmente existem dentro do ser humano individual. Eles são algo que as pessoas obtêm automaticamente ao nascer. Algumas pessoas nascem sem inteligência; elas não conseguem perceber as decepções alheias e nem percebem quando elas têm sido enganadas pelos outros. O Budismo considera imoral tirar vantagem dos outros dessa maneira. O nosso amigo pode não saber que está sendo enganado. Sem saber, ele pode não se incomodar com isso, entretanto, como é um ser humano, nasceu com o direito natural de não ser explorado. Ninguém pode especificar esse direito para outro e ninguém pode instituí-lo para ninguém: é, antes, um processo natural. Quando nós nascemos, todos nós, independentemente de sermos inteligentes ou estúpidos, aspiramos ao que é bom para nós mesmos. A autoestima, o desejo pelo melhor que é capaz de ser obtido para si mesmo, é a essência do ser humano. Isso também se aplica ao nosso amigo sem inteligência. Quando nós o enganamos, nós estamos cometendo um erro. É um erro porque nós não respeitamos o direito, que o nosso amigo tem integralmente, de não ser explorado como meio para obter vantagem pessoal por terceiros.
Alguns direitos naturais podem ser transferidos, outros não
Nós podemos dividir os direitos naturais em duas categorias: a primeira são os direitos naturais primários; a segunda, os direitos naturais secundários. Os direitos naturais primários são o nível mais fundamental de direitos. Os direitos naturais secundários são os direitos que se baseiam nos direitos naturais primários.
Quando nós usamos a nossa energia (seja trabalho manual ou intelectual) para produzir alguma coisa — suponha que nós trabalhamos em uma empresa e recebemos um salário de cinco mil baht por mês — a recompensa pelo nosso trabalho, os cinco mil baht, é o produto que nós temos obtido a partir do nosso trabalho. O Budismo explica que nós temos plenos direitos a esses cinco mil baht. Esse direito aos cinco mil baht é um direito natural. Mesmo que a sociedade não afirme que nós temos direito a esse dinheiro, nós temos o direito natural de reivindicar a propriedade. Observe que esse direito ao dinheiro ganho não é um direito fundamental, pois é possível questionar: em que fundamento esse direito se baseia? Em termos simples, quando nós dizemos que nós temos o direito de reivindicar a propriedade desses cinco mil baht, um amigo pode nos perguntar por que e com base em que nós fazemos essa afirmação. Direitos que não são fundamentais dessa forma são o que eu chamo de ‘direitos naturais secundários’.
[Observação PO: Apenas para conhecimento, 1 Baht Tailandês = 0,030 Dólar (EUA) 13.04.2025]
Quando nos perguntam por que nós pensamos que nós temos o direito de reivindicar a propriedade desses cinco mil baht, nós podemos responder que é porque nós os temos obtido com a força do nosso próprio trabalho. Como nós somos os donos do nosso próprio corpo e da nossa própria vida, quando nós os usamos para produzir alguma coisa, o produto dos nossos esforços naturalmente nos pertence. Isso é um direito, não é? Observe que, tendo respondido até aqui, não há mais perguntas. Quando nós afirmamos que nós somos donos das nossas vidas, a afirmação é clara por si só. Perguntar por que nós acreditamos que nós somos donos das nossas vidas é uma questão sem sentido. Os direitos à vida e ao próprio corpo são o nível mais fundamental de direitos para os quais não se é capaz de encontrar nenhuma outra base. Esse tipo de direito é o que eu chamo de ‘direitos naturais primários’.
Em resumo, na visão Budista, os direitos ao corpo e à vida são direitos básicos, o nível mais fundamental de direitos que não requer outra base. A propriedade humana do corpo e da vida é um fato que não necessita de justificativa ou explicação para sustentá-lo. Os direitos ao corpo e à vida são direitos naturais primários. Quando nós usamos esse corpo para produzir alguma coisa, naturalmente nós temos plenos direitos sobre esse produto. Os direitos sobre os produtos resultantes do esforço corporal são direitos naturais secundários.
Entre esses dois tipos de direitos naturais, os direitos naturais secundários são transferíveis. Quando nós usamos a nossa força física para produzir alguma coisa e acumulá-la como riqueza, nós temos direito a essa riqueza. Qualquer riqueza que nós não desejamos, nós somos capazes de transferir para outros. Tais tipos de transferência, como em atos de generosidade (dāna), ou legar heranças, são transferências de direitos à riqueza. No preceito contra o roubo (adinnādāna), nós descobrimos que o ato de se apropriar de riqueza só é errado quando o proprietário da riqueza não a transferiu de sua propriedade. A palavra adinnādāna, por si só, indica isso: ‘Tomar o que o proprietário não tem dado’.
Os direitos ao corpo e à vida são direitos naturais primários. Os direitos sobre os produtos resultantes do esforço corporal são direitos naturais secundários.
Observe que, quando nós doamos alguma coisa ou legamos uma herança, nós estamos transferindo os nossos direitos a essa riqueza para novos proprietários. As pessoas que recebem a transferência de riqueza têm, então, direitos naturais à riqueza que elas têm recebido. Assim, a transferência de riqueza não significa apenas a transferência de riqueza, mas, mais essencialmente, a transferência de direitos. O fator importante são os direitos; a riqueza é simplesmente o que vem com esses direitos.
Os direitos naturais primários diferem radicalmente dos direitos secundários. Os direitos primários não podem ser transferidos. Há histórias no Tipiṭaka de monges que, desgostosos com as suas vidas, pediram aos companheiros monges deles para que os matassem. Quando o Buda soube do assunto, ele concluiu que os monges que cometeram o assassinato estavam errados.[16] Observe que, nesse caso, os monges que foram mortos estavam totalmente preparados para morrer e, de fato, tinham pedido a alguém que os matassem, mas a aquiescência ao ato deles não foi suficiente para justificar isso.
[16] Vinaya Piṭaka, Mahāvibhaṅga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 1/176-179.
Na mesma passagem do Tipiṭaka, é relatado como vários monges, desgostosos com as suas vidas, se mataram. Nesse caso, o Buda julgou que os monges que se suicidaram não estavam errados, mas que as suas ações eram meramente ‘inadequadas para um recluso (samaṇa)’. No Vinaya, um monge que comete suicídio não é considerado culpado de uma ofensa pārājika, enquanto aquele que mata alguém que lhe pede para fazê-lo é culpado de tal ofensa.[17] Os dois casos são muito diferentes. Além do Vinaya, o suicídio não é considerado um ato de matar (pāṇātipāta), enquanto matar outra pessoa que pede para fazê-lo, ou por compaixão, para aliviá-la de um sofrimento intenso, é julgado pelo Budismo como um ato de pāṇātipāta.
[17] Vinaya Piṭaka, Mahāvibhaṅga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 1/176-179.
O fato de o Budismo ter essa perspectiva se baseia no tema dos direitos ao corpo e à vida em discussão aqui. A é dono de seu corpo e de sua vida. A tem plenos direitos sobre esse corpo e essa vida, mas esse direito, segundo o Budismo, é estritamente de A. Se A não deseja mais viver, ele pode usar os seus direitos para se matar e a sua morte não é considerada uma violação dos preceitos morais (a cláusula ‘pāṇātipāta’ dos cinco preceitos) porque a ação ainda está dentro do domínio dos direitos que ele possui. Mas suponha que A seja incapaz de se matar e convença B a fazer o trabalho por ele: o Budismo considera isso um erro, não da parte de A, mas da parte de B. A não está errado porque a sua decisão de morrer é o seu próprio direito, porém, B não tem o direito de matar A. Os direitos à vida não podem ser transferidos. O desejo de A de morrer e o seu pedido a B para fazer o trabalho por ele não constituem uma transferência de direitos. Como não há transferência de direitos, as ações de B constituem uma violação dos direitos de outra pessoa. É por isso que B está errado.
Direitos naturais primários e ser humano
Sartre afirmou que os seres humanos são amaldiçoados com a liberdade. Ele quis dizer que a liberdade era a essência do ser humano e essa essência está ligada à vida humana. Não é possível para os seres humanos desconectarem essa essência de si mesmos. Eles são capazes de se libertar dela somente quando morrem. A atitude em relação aos direitos à vida no Budismo é muito semelhante à ideia de Sartre. Na visão Budista, um ser humano é composto pelos cinco khandhas. Quando esses cinco khandhas são reunidos na forma de um ser humano, eles produzem um vasto número de potencialidades. Entre essas potencialidades estão a consciência, a aspiração por aquilo que se acredita ser bom na vida e o desejo pela excelência. Essas qualidades mentais são a essência do ser humano e essa essência é a fonte dos direitos naturais ao corpo e à vida mencionados acima.
A nasceu como um ser humano. Ele é como os outros seres humanos, com as suas aspirações, esperanças e o impulso deles para buscar a excelência. Essas potencialidades são valores em si mesmas. Sempre que outra pessoa trata A de uma forma que não esteja em conformidade com a aceitação desses valores (como contratá-lo para trabalhar por um salário baixo sem justa causa), essa pessoa está violando os direitos de A à vida e ao seu corpo. Nós podemos chamar isso de violação dos direitos humanos na visão Budista. Na visão Budista, ser humano é um produto de muitos fatores essenciais e um deles é o potencial de aspirar e lutar pela excelência. Esse potencial é essencialmente o mesmo que o direito natural primário. Os seres humanos são incapazes de se livrar dessa essência de sua humanidade. Uma vez que os direitos primários são um fator essencial do ser humano, os direitos primários não são algo que pode ser transferido de uma pessoa para outra.
O ponto levantado no parágrafo anterior é profundo e a sua profundidade pode ser explicada mais claramente se nós distinguirmos entre as maneiras como os dois tipos de direitos naturais podem ser referidos.
1. Ao dizer que o homem tem direitos primários, a descrição correta da relação entre os seres humanos e esses direitos é ‘o homem é direitos’.
2. Ao dizer que o homem tem direitos secundários, a descrição correta da relação entre os seres humanos e esses direitos é ‘o homem tem direitos’.
‘Ser’ e ‘ter’ têm implicações filosóficas distintas. Nós somos capazes de renunciar a alguma coisa que nós temos, mas nós não somos capazes de renunciar a alguma coisa que nós somos. Uma vez que nós nascemos como seres humanos, nós somos dotados pela natureza com certos fatores essenciais e esses fatores essenciais são o cerne do nosso ser humano. O Budismo sustenta que os direitos ao corpo e à vida são dotados pela natureza como a nossa humanidade essencial. Uma vez que eles são a essência ou a realidade do ser humano, não é possível que os seres humanos renunciem a esses direitos. Um homem farto da vida pode se matar, porque esse é o seu direito. Se ele tem medo de fazer isso sozinho ou não consegue fazê-lo por algum outro motivo, ele pode pedir a outra pessoa que faça o trabalho por ele. O pedido dele ainda está dentro de seus direitos, no entanto, esse pedido não o autoriza a renunciar ou transferir os seus direitos a outra pessoa, porque esses direitos são um cerne dentro dele. Qualquer pessoa que o mate, seja por compaixão ou por qualquer outro motivo, está, de acordo com a visão Budista, cometendo um erro. Nós não temos o direito de matar outra pessoa, mesmo que ela concorde com isso. Somente o dono de uma vida tem o direito de pôr fim a essa vida.
A atitude Budista descrita aqui pode ser usada para responder a uma série de questões éticas que são pontos de controvérsia constantes, como a questão da compra e venda de órgãos para transplantes médicos. O Sr. Verde é pobre, então ele decide vender um de seus órgãos para o Sr. Vermelho, que é rico. Na visão Budista, o Sr. Vermelho não tem direito aos órgãos do Sr. Verde, mesmo que ele possa comprá-los de forma justa e o Sr. Verde tenha concordado plenamente com a venda. Os direitos ao corpo e à vida são intransferíveis. Portanto, em nenhuma circunstância se pode comprar ou vender órgãos humanos sem violar princípios morais.
Seja como for, uma vez que esses direitos cessam no instante em que um ser humano morre (os direitos ao corpo e à vida começam quando os cinco khandhas se unem como ser humano e cessam quando os cinco khandhas se separam),[18] fazer uso de órgãos de uma pessoa que já faleceu e os legou para tais usos não é considerado uma violação de direitos.
[18] Um exemplo de como o Budismo sustenta que os direitos ao corpo e à vida cessam com a morte pode ser visto no fato de que o Budismo não sustenta que ‘matar’ uma pessoa já morta (acreditar que ela está viva) seja um erro moral. Veja o primeiro fator para pāṇātipāta (pāṇa significa que o ser está vivo. Matar um animal morto não é considerado pāṇātipāta) no Comentário ao Majjhima Nikāya, vol. 1, p. 211.
Direitos legais
Quando as pessoas vivem juntas em uma comunidade, naturalmente surgirão problemas de atrito e conflito. Esses problemas podem ser atenuados e prevenidos com o estabelecimento de regulamentos comunitários. Um exemplo de tais regulamentos são as leis que nós usamos em nossas sociedades. Os problemas de conflito e atrito entre as pessoas na sociedade surgem do desrespeito aos direitos naturais umas das outras. A instituição de leis para proteger esses direitos naturais é, portanto, uma maneira de resolver o problema. Direitos que são amparados por lei são conhecidos como direitos legais.
Na visão Budista, todos os seres humanos já possuem direitos naturais. São direitos ao próprio corpo, direitos à própria vida e direitos a qualquer riqueza que advenha desse corpo e dessa vida. Quando as pessoas vivem juntas em uma comunidade, haverá aqueles que não respeitem esses direitos naturais. Esse desrespeito se expressa em ações destrutivas, como assassinato. Tais problemas fazem com que seja necessário que a comunidade institua regulamentos para proteger os direitos naturais que as pessoas já possuem. O Budismo tem os seguintes princípios essenciais para instituir esses regulamentos:
1. Os direitos legais têm que estar em conformidade com os direitos naturais. Esse é um princípio geral. Isso significa que, ao instituir leis, a primeira e mais importante coisa que um legislador necessita considerar é que todos os seres humanos já possuem direitos naturais. Esses direitos naturais são os fundamentos dos direitos legais. A legislação de leis para proteger direitos não terá fundamento racional se o legislador não tiver em mente esses direitos naturais.
2. A legislação de leis que causam a violação dos direitos naturais de alguns membros da comunidade só pode ser feita quando há razão suficiente. Geralmente, os direitos naturais que as leis são capazes de sustentar são aqueles direitos que não interferem ou violam os direitos de outras pessoas. A legislação de leis para proteger esses direitos, como no item (1), não apresentaria nenhum problema se a sociedade humana fosse isenta de conflitos, entretanto, na realidade, a sociedade humana é repleta de conflitos. Ao resolver esse conflito por meios legais, é inevitável que uma determinada parcela da população tenha os seus direitos violados. O Budismo sustenta que tal violação dos direitos naturais é sustentável se houver razão suficiente para isso. Aqui, eu gostaria de dividir essa questão em dois tipos, mostrando para cada tipo quanto raciocínio é suficiente para a violação:
a. Problemas individuais. A é um ser humano. Como um ser humano, ele tem direitos naturais sobre o seu corpo e a sua vida, como já explicado. Quando A comete uma infração grave, a sociedade considera que tal infração merece pena de morte. Executar A é uma violação de seus direitos naturais. O Budismo sustenta que os seus direitos ao corpo e à vida são intransferíveis. Portanto, nós não podemos, em nenhuma circunstância, privar A da vida sem violar esses direitos.
No entanto, como as ações de A têm um efeito severo sobre a comunidade, quando os efeitos adversos resultantes da violação do direito à vida de A são comparados aos efeitos adversos que resultariam se a sociedade não tivesse padrões para punir as pessoas que cometeram tais infrações e considerasse essas últimas maiores, o Budismo permite o uso de leis que violem os direitos dos indivíduos que cometem infrações, como pode ser visto nos itens 1 a 6 dos 10 princípios do Buda para a instituição do Vinaya, mencionados na nota 9 desse artigo.
Resumindo isso como um princípio, se um indivíduo em uma sociedade comete um delito (a) e a sociedade considera que o delito (a) é um mal maior do que o delito (b), que é o mal resultante da violação dos direitos naturais do infrator, o peso maior desse mal é, por si só, justificativa suficiente para nos permitir instituir uma lei que viole os direitos desse indivíduo. Uma vez que a punição do infrator não é vista pelo Budismo como um castigo, mas como uma lição para que o infrator possa corrigir os caminhos dele,[19] um aspecto que quem aplica a punição por qualquer delito tem que ter em mente é como fazer com que a punição seja o mais leve possível, mas ao mesmo tempo suficientemente pesada para efetivamente induzir aquele que cometeu o delito a corrigir os caminhos dele.
[19] Khuddaka Nikāya, Jātaka, Paṭhama Bhāgo, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 27/359.
Em teoria, é possível questionar se a legislação de uma lei que infringe os direitos de uma pessoa é ou não apoiada pelo Budismo se o mal que surge da punição for igual ao mal que se pretende punir. Nesse sentido, eu sinto que, na prática, seria muito difícil ponderar dois tipos de mal e julgá-los como tendo o mesmo ‘peso’. Assim, tal questão, embora faça sentido no nível teórico, não apresenta problemas no nível prático. Mesmo no nível teórico, nós podemos responder que uma lei que impõe uma punição de um mal igual ao mal que se pretende punir ainda é viável, mas a lei será mais aceitável se formos capazes de demonstrar que a quantidade de mal resultante da prática desse mal de fato excede o mal resultante da punição. Uma boa punição, na visão Budista, é aquela que viola os direitos naturais do infrator na menor extensão possível e, ao mesmo tempo, tem dois efeitos básicos: ajuda o infrator a se arrepender e a vir a ser uma boa pessoa e previne o surgimento futuro de um tipo semelhante de má conduta.[20]
[20] Os princípios para punição, conforme descritos aqui, nunca foram mencionados diretamente pelo Buda. Eu os tenho extraído de dois importantes ensinamentos Budistas: 1. O princípio de que a punição não é castigo, mas uma medida corretiva para promover a melhora do transgressor (ver nota 19); 2. O ensinamento de que, se alguém tem que praticar o mal, então não se deve fazê-lo com frequência (Khuddaka Nikāya, Dhammapada, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 25/19). Embora a declaração do Buda se refira ao tempo, parece razoável estendê-la à intensidade do mal cometido. Reunindo os dois ensinamentos, nós podemos concluir que, se for necessário aplicar uma punição (um mal necessário), ela deve ser a mais branda possível e deve-se sempre ter em mente que não se trata de um ato de vingança ou castigo, mas de uma medida corretiva dada para permitir que o transgressor se corrija e venha a ser um membro construtivo da comunidade no futuro.
Criminologistas de algumas escolas têm uma opinião que a melhor maneira de prevenir a repetição de atos malignos semelhantes é impor punições mais severas. O Budismo não contesta isso diretamente, mas exige um equilíbrio entre a gravidade da violação de direitos e a eficácia dessa punição em prevenir a ocorrência de futuros atos malignos semelhantes. Em termos simples, o Budismo não condena a imposição de uma punição severa quando necessária, no entanto, a punição tem que ser um meio que tenha sido cuidadosamente considerado e visto como tal que viole os direitos naturais do infrator na menor extensão possível e também que seja eficaz na prevenção de futuros atos semelhantes de má conduta.
b. Problemas entre grupos ou entre indivíduos e grupos. Ao cortar uma via expressa em Bangkok, o governo teve que exigir a entrega de algumas terras pertencentes a um determinado grupo de pessoas. As pessoas que deveriam entregar as terras se uniram e protestaram, recusando-se a sair de suas terras. Esse é um exemplo de conflito entre grupos. Nesse conflito, há dois lados: o primeiro é a comunidade de pessoas que possuem as terras por onde a via expressa passará; o segundo é o grupo de pessoas que serão beneficiadas pela via expressa.
Suponha que, em última análise, o governo decida construir a via expressa, com o resultado de que as pessoas que tiveram as suas terras confiscadas tivessem que se mudar e, devido a um sistema de repatriação obsoleto, recebessem baixos pagamentos por suas terras. A decisão do governo, nesse caso, poderia ser claramente considerada uma violação dos direitos de propriedade das pessoas daquela comunidade. Surge a questão de com base em que a ação do governo, embora viole os direitos de vários de seus cidadãos, pode ser justificada. O problema do conflito entre grupos ou entre um indivíduo e um grupo é chamado no Budismo de vivādādhikaraṇa. Refere-se aos problemas que surgem quando dois grupos ou lados têm visões diferentes sobre uma determinada questão. Quando ambos os lados explicam as razões de sua posição, a fim de convencer o outro lado a aceitar a opinião deles e ambos os lados continuam a manter a posição deles, o Buda recomenda que se tome a vontade da maioria como fator decisivo. Uma decisão tomada com base na maioria é conhecida como yebhuyyasikā.[21]
[21] Vinaya Piṭaka, Cullavagga, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 6/611.
Ao tomar decisões com base na maioria, nós somos frequentemente levados a considerar a questão da justiça: o voto da maioria é suficiente para tornar uma decisão justa? É justo que um grupo de pessoas precise se mudar do lugar que tem ocupado por muitas gerações simplesmente porque é uma minoria em comparação com o grupo de pessoas que se beneficia da via expressa? Como nós explicamos isso?
Esse tipo de problema surge com todos os sistemas que aderem ao consenso da maioria para a resolução de conflitos (como o sistema político democrático). Em resposta, o Budismo afirma que, ao falar de justiça, nós temos que vê-la como de dois tipos: o primeiro é a justiça do sistema, o segundo é a justiça dos casos individuais que surgem dentro desse sistema. A pergunta acima é um problema porque é feita em referência ao segundo tipo de justiça, a justiça dos casos específicos. Não haveria problema se nós respondêssemos à pergunta em referência ao primeiro tipo de justiça, a justiça do sistema.
Diz-se nos suttas que, pouco depois de o Buda ter entrado em parinibbāna, o brâmane Vassakāra teve um encontro com o Venerável Ānanda. Ele perguntou ao Venerável Ānanda se, antes de seu parinibbāna, o Buda havia nomeado algum monge para ser o líder da Ordem em seu lugar. Ānanda respondeu que não e continuou explicando que, antes do parinibbāna, o Buda havia anunciado que a Ordem deveria defender e reverenciar o Dhamma em seu lugar. A palavra ‘Dhamma’ aqui se refere aos princípios ou ao sistema estabelecido pelo Buda. Ānanda então continuou dizendo que esses princípios ou esse sistema são o que pode ser usado para explicar onde está a justiça em violar os direitos pessoais de um monge quando ele comete uma transgressão e uma penalidade lhe é conferida. Observe o seguinte:
Brâmane! O Arahant, o Buda Perfeitamente Iluminado, aquele que tudo vê, estabeleceu as regras de treinamento e a disciplina do pāṭimokkha para monges. Quando chega o dia de uposatha (observância), nós, monges que vivemos na mesma área, nos reunimos e convidamos um monge que tem memorizado com precisão o pāṭimokkha para recitar o conteúdo do pāṭimokkha. Enquanto esse monge recita o pāṭimokkha, para qualquer monge que tenha cometido uma transgressão, nós imporemos uma ofensa (āpatti) de acordo com os ensinamentos e princípios estabelecidos pelo Buda. Não somos nós que impomos as ofensas; é, antes, o Dhamma que as faz através de nós.[22]
[22] Majjhima Nikāya, Uparipaṇṇāsaka, Syāmraṭṭha Tipiṭaka, 14/111.
A partir da passagem acima, pode-se perceber que, na visão Budista, uma vez que alguém ingressa na Ordem monástica, essa entrada é, em si mesma, a aceitação dos regulamentos da comunidade que todos os membros da Ordem aceitam como princípios bons e justos. Quando um deles comete um erro, a Ordem aplica uma penalidade. A imposição dessa penalidade é essencialmente uma violação dos direitos individuais do infrator, mas é uma violação válida e essa validade é uma validade do sistema, não uma validade do grupo de indivíduos que foram designados pela Ordem para aplicar a penalidade.
O mesmo princípio se aplica à resolução de disputas por referência à maioria: quando dois grupos de monges têm opiniões diferentes sobre um determinado assunto e a minoria é derrotada, não são as opiniões que foram derrotadas, mas os números. Nós temos que considerar a questão da justiça em termos do sistema. O sistema mencionado aqui é o que o Buda considerava justo e imparcial. É natural ter opiniões diferentes sobre certas questões que surgem em grandes grupos de pessoas. Quando nenhum dos lados consegue persuadir o outro a concordar com a sua opinião, a melhor maneira de resolver o conflito é recorrer à voz da maioria. Isso não significa que o lado ‘vencedor’ esteja necessariamente certo ou que o lado ‘perdedor’ esteja necessariamente errado. A adesão à visão da maioria é simplesmente um meio de garantir que as atividades da comunidade prossigam sem problemas. O lado perdedor, nesse caso, não precisa necessariamente ser o mesmo em outros casos.
Resumindo, o Buda estabeleceu o sistema de ‘regra da maioria’ para permitir que a Ordem, que naturalmente conterá diferenças de opinião sobre várias questões, prossiga e funcione sem problemas. O sistema é aberto. É aberto no sentido de que ‘vencedores’ ou ‘perdedores’ não se restringem a grupos específicos dentro da Ordem. O grupo que vence hoje pode perder mais tarde. Para falar de justiça, nós temos que olhar para o sistema como um todo, não para casos individuais em momentos isolados.
As pessoas da comunidade que tiveram que entregar as terras delas podem parecer ter sofrido uma injustiça quando o caso delas é analisado isoladamente, no entanto, se nós olharmos em uma escala mais ampla, para o sistema como um todo, nós descobrimos que essas pessoas também podem estar incluídas em um grupo maior de pessoas que serão beneficiadas pela construção de uma barragem, o que é outro caso. Ao mesmo tempo, os moradores que são realocados para a construção da barragem podem estar incluídos no grupo maior de pessoas que serão beneficiadas pela construção de uma usina nuclear em outro caso. Essa é a justiça do sistema como um todo.
[Traduzido da versão tailandesa por Bruce Evans]
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A Espiritualidade nas Empresas trata-se de uma Filosofia cujos Princípios são capazes de ajudar tanto as Pessoas quanto as Organizações.
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